Sopram ares de novidade no ramo específico da moda evangélica pentecostal, mas a linha mais tradicional ainda resiste. A máxima de que a mulher deve se apresentar de forma que se diferencie do homem, o que costuma justificar a proibição para calças, baseia-se na Bíblia, em geral em uma passagem de Deuteronômio, capítulo cinco, versículo 22: “Não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque, qualquer que faz isto, abominação é ao Senhor teu Deus”. As proibições para aberturas e pouco pano são defendidas pela necessidade constante de decência. Seguidores das mais diversas comunidades evangélicas darão explicações semelhantes para o que isso significa.
Pastor da Igreja Pentecostal Fiel É Deus, em Venâncio Aires, Gerson Frantz afirma que é preciso “enquadrar as moças dentro da ‘palavra’”, referindo-se aos textos sagrados. Mas, apesar de as mulheres serem sempre as mais visadas pelas sanções referentes às vestimentas, Frantz também faz ressalvas ao que tem observado entre as fileiras masculinas.
– A palavra de Deus diz que temos que santificar o corpo, a alma e o espírito. Entre o casal, tudo bem.
Mas hoje está cada vez mais difícil seguir a palavra de Deus por causa de tudo isso que o mundo está oferecendo: a moda está cada vez mais sendo a mulher usar menos roupa, roupa justa, o homem com roupa justíssima, calça apertada, que marca todo o corpo – critica o pastor. Mulher de Frantz, a comerciante de roupas (evangélicas) Vanuza Ruppenthal Frantz, 48 anos, endossa o discurso do marido:
– Você tem que fazer jus a quem está servindo, tem que pensar em como Deus está te vendo. Vai que um dia eu tenho um encontro com Deus? O que o mundo aceitou não é o que Deus vai aceitar.
Frantz instrui, em uma reunião privada, todo aspirante ao batismo em seu ministério. O processo se assemelha, compara ele, à contratação de um trabalhador por uma empresa – ao chegar, o novato precisa saber quais são as regras daquele lugar que passará a frequentar. Acontece, vez ou outra, de alguém sofrer uma advertência, no caso de aparecer nos compromissos religiosos com peças apertadas.
– Chamo a pessoa para o lado, em particular, e dou uma orientação. A gente procura fazer tudo com amor, para não machucar, para não entristecer ninguém. A pessoa acaba se convencendo de que é a palavra de Deus que está certa – diz Frantz.
Você tem que fazer jus a quem está servindo, tem que pensar em como Deus está te vendo. Vai que um dia eu tenho um encontro com Deus? O que o mundo aceitou não é o que Deus vai aceitar.
VANUZA FRANTZ
Comerciante de roupas evangélicas
O compêndio do decoro avança, claro, para além dos domínios religiosos, alcançando situações cotidianas. Na igreja coordenada pelo pastor, a saia deve cobrir os joelhos quando a fiel estiver sentada e não pode ter recortes ou transparências que chamem a atenção dos demais para esses pontos desnudos. Calças são permitidas para trabalhar.
– Tanto em casa, como na igreja ou na rua, a mulher tem que se vestir decentemente. Em casa, também deve usar a sua saia, o seu vestido. Para dormir, orientamos que seja com camisola, e o homem, com pijama – detalha Frantz.
Para os meses de calor, quando destinos com praia e piscina estão entre as principais opções de lazer, Frantz é taxativo:
– Eu e minha esposa não frequentamos. Orientamos nossos obreiros a não irem à praia nem a campings. Não é bom estar nesse meio, eles vão estar se expondo.
E se o fiel desejar conhecer o mar?
– Se a pessoa estiver vestida de roupa normal, tudo bem. Orientamos a não colocar roupa de banho.
Quem escapa aos ditames, especialmente a mulher – mais vigiada, visada e criticada –, por descuido ou vontade própria, corre o risco de ser rotulada com a adaptação de uma gíria bastante conhecida. Classifica-se com o termo pejorativo “periguete” aquela que se veste de forma apelativa, para atiçar a libido alheia, e que se porta de maneira sensual, muitas vezes bastante incisiva, na direção de seu objeto de desejo, não importando o status de relacionamento do alvo. No âmbito evangélico, a “periguete” virou “perigospel”, sem mudança de sentido na acepção do termo.
– A gente brinca que ela vai para a igreja e tira a comunhão (atenção) do irmão – diverte-se a digital influencer Renata Castanheira. – Vejo mulheres com esse perfil.
Um exemplo da tradição que se mantém, mas aos poucos se renova, está em lojas como a Roupa Nova Gospel, na Rua Voluntários da Pátria, centro de Porto Alegre. Na entrada de um pequeno shopping, o estande de 20 metros quadrados tem uma equipe de três vendedoras – todas da Assembleia de Deus –, coordenadas pelo gerente Eduardo Luis Kowalski, 28 anos, e por sua irmã, Elisiane Kowalski Woll, 36 anos, a proprietária.
Vamos desde os conservadores até os mais liberais, mas não chegamos ao ponto de ter calça. Aqui todo mundo honra a Deus primeiro para depois honrar o nosso negócio.
ELISIANE KOWALSKI WOLL
Proprietária da Roupa Nova Gospel
Para trabalhar ali, é preciso, segundo os patrões, ser evangélica, temente a Deus e usar saia. Prescinde-se de experiência prévia, basta a boa vontade para aprender. Mulheres de classe média-baixa, entre 18 e 35 anos, são o público-alvo, e o setor mais sortido é o de saias jeans. Quem vasculha os cabides pendurados nas araras ou as pilhas nas estantes não vai encontrar calças, regatas, blusas muito arejadas ou bermudas.
– Vamos desde os conservadores até os mais liberais, mas não chegamos ao ponto de ter calça. Aqui todo mundo honra a Deus primeiro para depois honrar o nosso negócio – esclarece Elisiane, frequentadora da Igreja da Mensagem: Tabernáculo da Palavra, em Cachoeirinha.
Sem corte há mais de 15 anos, as melenas castanhas sustentadas por Elisiane ondulam pelas costas, passam pelo bumbum e descem até a altura das coxas. A justificativa de muitas fiéis é de que o cabelo precisa ser preservado porque lhes foi dado como se fosse o “véu da noiva”.
Para dar conta de desembaraçar o cabelão a cada lavagem, dia sim, dia não, ela começa pelas pontas, subindo aos poucos. Certa vez, estava em uma agência bancária quando um homem lhe ofereceu R$ 6 mil pelos cabelos. Nem cogitou a negociação.
– Mas você nunca vai cortá-los? – questiono.
– Nunca – ela garante.
– Mas nem as pontinhas, se um dia precisar? – insisto.
– Não. Não vai precisar – sorri Elisiane.
– Tem mulheres na igreja com o cabelo arrastando pelo chão! – ufana-se Eduardo.
A gente tem que se aceitar como se gosta. Eu decidi estar onde estou.
ELISIANE KOWALSKI WOLL
Proprietária da Roupa Nova Gospel
A empresária também não usa maquiagem, tampouco esmalte. Em sua casa, onde mora com o marido e os dois filhos pequenos, não há aparelho de televisão. No dia da entrevista, vestia uma saia longa vermelha e uma blusa preta de mangas até o cotovelo. Formada em um curso de Modelagem Industrial, ela mesmo desenha os figurinos, ao gosto da clientela.
– Nossa irmã aqui do Sul tem mais quadril e menos cintura – detalha, repassando os cabides para mostrar suas criações.
O comprimento mínimo das saias disponíveis é de cinco dedos acima do joelho para mulheres altas. Comento que a medida não parece muito conservadora, e Elisiane, de imediato, espalma os dedos abaixo da minha saia para verificar se me encaixo no padrão tolerado. Veredicto para a repórter, que mede 1m63cm: saia muito curta. Proponho um teste: e se eu viesse entregar um currículo almejando um emprego de atendente na loja? Além da saia inadequada, visto uma blusa que, em uma tarde quente de março, deixa os ombros à mostra. Um esmalte cor de vinho cobre as unhas.
– Eu até comentaria com elas que você tem um bom diálogo, mas não a contrataria – confessa Eduardo.
Elisiane sugere um modelito para a jornalista. Em uma rápida olhada da cabeça aos pés, acerta o número do manequim da suposta cliente e sai para coletar uma saia jeans longa, com losangos em preto e azul, a R$ 89,99, e uma blusa preta de gola arredonda, manga curta e pedrarias no peito, por R$ 55.
Achei libertador sair na rua de calça. As pessoas me olhavam diferente, como se falassem: 'Será que está na igreja, será que não está?'”.
FERNANDA NUNES
Assistente fiscal
– Mesmo não sendo da igreja, você usaria essa saia – assegura a proprietária, orgulhosa da versatilidade de suas produções.
Boa parte das saias e das blusas ganha um forro para evitar que os contornos da roupa íntima se salientem sob o tecido. Apesar de a loja ter um foco específico, os looks também são procurados por quem trabalha em escritórios e consultórios. Tarimbadas na lida com o público, as vendedoras já sabem, só de olhar, se a cliente que chega é evangélica ou não – em caso positivo, recorrem a uma forma de tratamento mais específica.
– Posso ajudá-la, irmã?
– Boa tarde, irmã!
– Deus te abençoe, irmã!
Há gente de fora da igreja que, ao se ver rodeada pelas dedicadas operárias da fé, acaba encomendando uma oração. Elisiane informa que os pedidos são atendidos.
Um exemplo de fiel que está a meio caminho entre a ala mais conservadora e a mais liberal é a assistente fiscal Fernanda Nunes, 24 anos. Na infância, ela viu mulheres, inclusive da família, devotas da Assembleia de Deus, dormindo de saia e blusa, de prontidão para o caso de algum conhecido aparecer batendo à porta, necessitado de uma prece. Fernanda cortou o cabelo pela primeira vez por volta dos 16 anos, quando já era uma moça cursando o Ensino Médio. Lembra-se de que, na mesma época, estreou em um jeans.
– Achei libertador sair na rua de calça – recorda a assistente, que se sentiu alvo da curiosidade de estranhos. – As pessoas me olhavam diferente, como se falassem: “Será que está na igreja, será que não está?”.
Hoje em dia, no guarda-roupas, Fernanda tem diversas calças jeans. Não usa blusa de alça nos cultos, mas, em outras ocasiões, sim. Dispensa adornos como brincos e não pinta
as unhas com cores quentes. Explica ter aberto a mente, mas destaca que não deixou de concordar com as regras da igreja. Julga indecentes as roupas muito curtas, que “mostram mais do que devem”.
Crente até o diabo é. Quem vive literalmente a Bíblia é cristão.
EDUARDO LUIS KOWALSKI
Gerente da Roupa Nova Gospel
– Ouvi homens falarem que mulheres mais arrumadinhas, cobertas, despertam mais o interesse porque eles não sabem o que tem ali. As mulheres mais descobertas já estão mostrando tudo – relata a assistente fiscal. – Acho realmente mais bonito mulher vestida de maneira mais decente. Tudo que é moderado é bom. Tem que andar com decência. Mas roupa não é tudo: se você não tiver o coração limpo, a roupa não o faz ser santo.
A trilha sonora da Roupa Nova Gospel é composta, claro, por sucessos do cancioneiro gospel. Das caixas de som, ressoam sucessos de Fernanda Brum, Isadora Pompeo, Cassiane, Fernandinho e Voz da Verdade. Funcionários das lojas vizinhas no pequeno centro comercial dizem não se importar com a cantoria em alto volume. Quando Shaiane da Silva dos Santos, 23 anos, conseguiu ser admitida como vendedora do estande em frente, assustou-se:
– Bah! Vou trabalhar na frente de uma loja de crente.
Achava que evangélicos eram preconceituosos e viviam falando da vida alheia. Em pouco tempo, com a convivência, mudou de ideia, e até já comprou alguns itens na Roupa Nova Gospel – no dia da visita da reportagem, a propósito, vestia uma blusa adquirida ali. Eduardo e Elisiane não parecem se importar com o preconceito. Ela, especialmente, que carrega na aparência elementos que denotam sua fé, procura se preservar quando vai a determinados lugares – prendendo o cabelo, por exemplo, para não chamar tanto a atenção.
– A gente tem que se aceitar como se gosta. Eu decidi estar onde estou – alega.
Quanto a ser chamado de “crente”, de maneira depreciativa, Eduardo corrige:
– Crente até o diabo é. Quem vive literalmente a Bíblia é cristão.
Na despedida, recebemos, repórter e fotógrafo, um sem-fim de bênçãos. As cinco vozes se sobrepunham ao nos desejar prosperidade no trabalho.
– Que Deus te abençoe. E que Deus abençoe o que você for escrever – despede-se Elisiane.