A promessa de dedicação ao próximo, caso se recuperasse de um câncer de mama, transformou a artista plástica Anna Lucia Dias Morrison, 65 anos, na maior defensora da Ilha dos Marinheiros, no município de Rio Grande.
Era o começo da década de 1990 e, durante o tratamento, ela seguia de ônibus a Porto Alegre para as sessões de quimioterapia quando, em uma das viagens, viu uma edição impressa de Zero Hora na poltrona ao lado. Na página aberta, havia uma reportagem sobre a Semana Santa organizada pelos moradores da ilha, lugar conhecido por ela desde a infância. Anna pensou: “Se em uma página inteira pode-se falar só sobre esse fato, imagina se pudéssemos mostrar a cultura e o todo o valor do lugar? Se eu melhorar, farei o que estiver ao meu alcance para as pessoas conhecerem a Ilha dos Marinheiros”. E ela fez.
Neta de portugueses do distrito de Aveiro, que atravessaram o Atlântico para recomeçarem a vida no Brasil, Anna cresceu entre as hortas e os pomares plantados por eles nessa ilha de colonização açoriana, a maior de toda a Lagoa dos Patos, com 39 quilômetros quadrados de área, localizada a 45 quilômetros do centro de Rio Grande. Ainda criança, aprendeu a cantar fado e se apresentou em eventos locais interpretando as letras mais tradicionais do gênero musical tipicamente lusitano.
Depois de adulta, mesmo morando na área central da cidade localizada no sul do Estado, nunca desapegou do lugar onde se sentia mais próxima do país dos antepassados.
Em 1993, totalmente recuperada, Anna começou voluntariamente um projeto de pesquisa, com o apoio da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), para resgatar a memória da Ilha dos Marinheiros. Colonizada a partir do século 18 por portugueses, a ilha recebeu esse nome porque os marinheiros responsáveis pela construção do Forte Jesus, Maria, José iam ao local para buscarem água potável e lenha. Ponto importante da colonização na época, a ilha foi visitada por Dom Pedro II em 1845.
Um século depois, a região chegou a ter 14 mil moradores atuando na pesca artesanal e na agricultura. Hoje, cerca de 1,3 mil pessoas vivem no local desempenhando as mesmas funções. Uma única estrada, de 27 quilômetros de extensão, liga os cinco pequenos povoados que a compõem: Porto do Rey, Marambaia, Coreia, Bandeirinhas e Fundos. De herança, os antepassados deixaram as festas religiosas de São João Batista, Nossa Senhora da Saúde e Santa Cruz.
Anna sempre teve o desejo de conhecer as origens da própria família. Pouco sabia, por exemplo, sobre a travessia que o avô materno, Antônio Martins, fez, aos 12 anos, junto a dois irmãos, desde Aveiros através do Oceano Atlântico. Durante a pesquisa, ela visitou Portugal algumas vezes, estreitou laços com parentes distantes e descobriu a história de seus avós maternos e paternos, que jamais voltaram à terra natal.
A ilha nas escolas e nos CTGs
Na ilha, a artista plástica se aproximou dos ilhéus mais antigos para ouvir seus relatos. As entrevistas com os moradores e as visitas à Europa originaram seu primeiro livro, A Ilha dos Três Antônios, publicado com o apoio do governo de Portugal e lançado nos dois países. O nome da obra relembra a época da colonização, quando a ilha foi transformada em três sesmarias, doadas ao capitão Antônio Gonçalves dos Anjos, a Antônio de Araújo Vilella e a Antônio Gonçalves Pereira de Faria.
Muita gente desconhece a história. Mas estou aí para divulgá-la. Fazer esse papel para que as pessoas passem a valorizar a própria história.
ANNA LUCIA DIAS MORRISON
Artista plástica
A partir das conversas com os ilhéus, Anna percebeu que poderia ajudar a divulgar a região resgatando os costumes açorianos que estavam se perdendo. Em 1996, fundou a Sociedade Marinhense de Desenvolvimento Sustentável, uma Oscip focada no turismo como alternativa de renda aos moradores.
– Muito do que ainda existe na ilha é típico da cultura portuguesa, como as capelas, os arcos de romaria e a gastronomia típica – ressalta.
O projeto social criado por ela aborda a cultura e a história local nas escolas de Rio Grande. Usando trajes típicos, a artista plástica levou para as salas de aula temas como a colonização, a importância das origens e os costumes. Aos moradores locais, elaborou oficinas de confecção de Marafonas – bonecas típicas da região do Alentejo, que celebram a fertilidade e a felicidade conjugal. E até os CTGs da cidade solicitaram à Anna auxílio para se aproximarem da cultura lusitana.
Em busca de apoio
Católica, como a maior parte dos moradores da ilha, ela criou em 2007 o maior atrativo turístico da comunidade: o Recanto de Lurdes, um espaço a céu aberto que recebe religiosos de todo o Estado. A ideia surgiu quando a Oscip foi presenteada com as imagens de Nossa Senhora de Lourdes e de Santa Bernadete, esculpidas e doadas pelo escultor Érico Gobbi. Com o apoio de dois patrocinadores, ela transformou um terreno baldio na área mais procurada na ilha. Pelo menos 200 turistas de várias procedências (franceses e portugueses, inclusive) passam pelo recanto a cada final de semana.
Outra de suas contribuições foi incentivar a continuidade dos grupos folclóricos da localidade. Ela elaborou um estudo sobre a importância do trabalho centenário do grupo de terno de reis Cancioneiros da Ilha e apresentou a justificativa à Câmara de Vereadores de Rio Grande. A manifestação popular recebeu apoio, e em 2017 o prefeito Alexandre Lindenmeyer tornou o grupo patrimônio cultural do município. Com o reconhecimento, Anna e os músicos buscam apoio financeiro para ampliar o trabalho.
Durante pelo menos uma década, grupos de turistas eram recebidos pelos próprios moradores, em ações organizadas e apoiadas pela Oscip. Sem dinheiro, no entanto, as ações de turismo na ilha foram escasseando. Anna promete não desistir de mostrá-la ao mundo.
Reconhecida pelo trabalho quase solitário, a artista acabou se tornando diretora cultural do Centro Português de Rio Grande, onde atua até hoje. Em 2010, ela recebeu o troféu Fernando Pessoa, concedido pelo Instituto Cultural Português, pela divulgação da presença portuguesa no Estado.
– Há 26 anos, sou conhecida por me dedicar à ilha. Sempre arranjo um tempo para o voluntariado. Farei isso a minha vida toda, porque é a minha terra. A gente tem de preservar. Não podemos deixar isso ruir – diz.
"Queria que existissem mais Annas por aí"
Amigo de Anna Lucia desde a infância, o agricultor e morador da Ilha dos Marinheiros Izair das Neves e Silva, 56 anos, viveu por sete anos fora da ilha. Nesse período, sentiu saudade do lugar onde nasceu. No retorno, decidiu engajar-se na divulgação da região. Hoje, além de trabalhar na produção de hortaliças, é o braço direito da artista plástica entre os ilhéus. Voluntariamente, Izair ajuda a organizar as festas religiosas da região, fiscaliza a limpeza do Recanto de Lurdes e recepciona os visitantes.
– A Anna é uma filha da ilha. Depois da pesquisa, ela tornou este lugar conhecido. Se hoje temos turistas de diferentes partes do Estado e até de fora do Brasil nos visitando, foi graças a todas as divulgações feitas por ela. Queria que existissem mais Annas por aí.