Por Martim César
Letrista, músico e poeta, autor do recém-lançado livro de contos "Sangradouro" (Ed. Movimento)
Quando folheamos um livro de história, com seus fatos e efemérides, e mergulhamos em seus relatos, não raro alguns personagens intrigantes emergem por entre os acontecimentos relatados. Nem sempre são os protagonistas famosos, os heróis cantados e decantados. Os quase anônimos surgem como dizendo que a história guardou alguns poucos nomes, mas se esqueceu de outros, principalmente dos que deram o perfume de uma época, o entorno mágico de um ambiente e de um cenário que não mais se repetirá.
Um desses grandes personagens da história (e da cultura) do Rio Grande do Sul é Pedro Muniz Fagundes, apelido Pedro Canga, nascido em 1789, no Herval, quando aquela povoação não era mais do que um acampamento militar, uma capela e poucas casas de pau-a-pique, cobertas de palha de Santa-Fé (em 1823, sua sede seria transferida para um local próximo ao primitivo estabelecimento). Era o tempo das incursões do afamado militar luso-brasileiro Rafael Pinto Bandeira. Naquele então, essa guarda avançada de fronteira era conhecida como São João Batista do Erval (antes fora acampamento do Piratini) e, assim como a freguesia da Nossa Senhora da Graça do Arroio Grande, passaria a pertencer à jurisdição da Vila do Espírito Santo do Serrito, futura Jaguarão.
Talvez, para justificar o resgate de Pedro Canga, bastasse escrever que ele participou da Guerra da Cisplatina (1825-1828), aquela contra José Artigas, acompanhando os exércitos de Lecor, quando os luso-brasileiros invadiram e anexaram a Banda Oriental, fazendo dela mais uma província do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Depois, ela seria independizada como República Oriental do Uruguai, no episódio que ficou conhecido como Gesta dos Trinta e Três.
Talvez bastasse escrever que, anos depois, ele esteve na Revolução Farroupilha (1835-1845), participando dela ativamente, integrando, inclusive, um de seus mais importantes acontecimentos – a declaração da independência da República Rio-Grandense, pelo General Antônio de Souza Neto, na batalha do Arroio Seival, nos campos dos Menezes, atual município de Candiota, perto das nascentes do Rio Jaguarão.
Ou bastasse o complemento – mais difícil de comprovar, mas não menos valioso – de que Pedro Canga foi o trovador mais respeitado do seu tempo, duelando e possivelmente vencendo invariavelmente seus oponentes, nesse embate muito conhecido e apreciado por todos os que possuem alguma vivência campeira. Trovas essas que provavelmente passaram de geração a geração, repetidas ao derredor dos fogões, como se fossem anônimas.
Ou ainda – para os literatos e estudiosos dos primórdios artísticos do nosso Estado –, vale lembrar que escreveu poemas de grande valor literário, com rimas elaboradas e inovadoras. Com uma erudição surpreendente, tanto para sua época, quanto para a região onde habitava. No entanto, no improvável caso em que tudo isso seja insuficiente para marcar seu nome, ainda seria possível escrever que ele protagonizou um dos maiores feitos de seu tempo, ao fugir da ilha de Fernando de Noronha (para onde fora desterrado por haver matado um oponente) e vir pelas matas brasileiras, desde Pernambuco até chegar ao Herval novamente, em uma odisseia difícil de ser repetida, ainda mais por ter sido realizada no século 19.
Esse é o relato, essa é a história. E essa é a lenda. E ainda, por certo, poderíamos escrever mais sobre esse homem que viveu quase toda a vida nessa fronteira, a qual, para o bem e para o mal, também ajudou a fixar.
O historiador Guilhermino César, no livro O Embuçado do Erval – Mito e Poesia de Pedro Canga, faz um apanhado da vida e da obra desse fascinante personagem, buscando trazer à luz alguns fatos da sua história, deixando outros para uma possível (e não provável) futura elucidação, posto que a maior parte de sua trajetória foi – e talvez permaneça assim para sempre – um grande mistério. Também o grande escritor pelotense João Simões Lopes Neto incluiu um poema de Pedro Canga na segunda edição de seu Cancioneiro Guasca.
O que se sabe – se algo dele se sabe com certeza – é que sua vida perpassa, intrigante e misteriosa, por dois episódios fundamentais da formação do Rio Grande do Sul e da consequente fixação das fronteiras meridionais brasileiras: a Guerra da Cisplatina e a Revolução Farroupilha. Sabe-se, por exemplo, que era parente dos afamados Silva Tavares e que, em suas fileiras, esteve em ambos os episódios militares citados. No último, justamente por essa ligação de sangue com os parentes (que depois seriam barões e viscondes imperiais), atuou no bando dos legalistas, muito embora o militar e escritor João Cezimbra Jacques, em seu livro Ensaio Sobre os Costumes do Rio Grande do Sul, ao citar seu mais famoso poema, coloque-o como tendo sido feito pelo soldado farrapo Pedro Canga, equivocadamente.
Essa importante diferenciação, entre ser farrapo ou imperial, é esclarecida por Graciano Alves de Azambuja, diretor do Anuário da Província do Rio Grande do Sul, por ocasião da publicação de suas poesias. No Anuário, Azambuja escreveu: "Pedro Muniz Fagundes, filho do Erval. Na revolução de 1835, militou nas fileiras da Legalidade".
Guilhermino César, ao escrever sobre esse fato, argumenta: "Mas Pedro Canga, é de supor-se, foi ‘imperialista’ menos por amor das instituições do que por espírito de companheirismo; primo e amigo do Coronel João da Silva Tavares (futuro Visconde de Cerro Alegre), juntos marcharam para enfrentar os mesmos perigos. (...) O Coronel pelejaria durante 10 anos ao lado de Pedro II, contra o movimento revolucionário nascido sob a chefia de seu compadre e amigo Bento Gonçalves, a quem sucedera no comando da fronteira de Jaguarão. Pedro Canga serviu, como oficial, no seu estado-maior, e da vida de ambos, sob as tendas de campanha, ou no embate das cargas de cavalaria, ficou um friso histórico em que avulta a coragem e a nobreza cavalheiresca".
Em História da Grande Revolução, o historiador Alfredo Varela relata um acontecimento retirado da ata que registrou a capitulação de Silva Tavares diante do comandante farrapo David Canabarro, escrita na casa de Bonifácio José Nunes, em 17 de dezembro de 1836, onde ele diz que: "Surpreendidos por Canabarro na estância do sogro de Silva Tavares, este e Pedro Canga são presos e postos a ferros".
Trovas no front
Como um acréscimo ao quadro que vai se formando sobre o personagem, o jornalista, crítico musical e colunista de ZH Juarez Fonseca, em seu livro Gildo de Freitas, publicado na coleção Esses Gaúchos, escreveu que "antes de Gildo só houve outro mito (como trovador): Pedro Muniz Fagundes, o Pedro Canga, nascido na região da Campanha cem anos antes e personagem de histórias da Revolução Farroupilha. Era um repentista conhecido, famoso no falar rimado, e muitas das suas quadrinhas passaram para o folclore".
Em outro trecho, Juarez nos dá mais detalhes sobre a história e o mito de Pedro Canga: "Fez sua fama nos campos de batalha, e tal fama assume contornos mais nítidos quando se sabe que ele lutava contra os farrapos, animando as forças legalistas de Silva Tavares. Virou lenda. Contam que, certa vez, por exemplo, essas forças se encontraram com os farroupilhas de Antônio de Souza Neto, entre os quais estava um primo de Pedro Canga, bom trovador também. Passado um tempo, o ferrenho combate foi interrompido para que os dois primos inimigos o decidissem na trova. Não importa quem venceu; importa é a lenda. Ela e Pedro Canga estão entre os primeiros registros da trova gaúcha, de peleia através da imaginação e da criatividade artística".
Guilhermino César relata que o compilador das poesias de Pedro Canga, chamado Manoel da Costa Medeiros, deixara descendentes, e que um deles, seu filho José Emílio da Costa Medeiros, tinha em seu poder uma biografia então inédita do grande personagem, relatando que "Pedro Fagundes, já depois de velho, fez um assassinato e foi processado, preso e condenado a desterro perpétuo para a Ilha de Fernando de Noronha. De lá fugiu e, desembarcando em Pernambuco, fez a travessia até Rio Grande a pé, ocultando-se pelos matos. (...) A princípio vivia meio oculto e logo depois livremente, acobertado pela tolerância que as autoridades lhe concederam".
Na carta que José Emílio escreveu para Guilhermino César, consta ainda que Pedro Canga era casado com Benigna da Porciúncula, pertencente a uma antiga família de Jaguarão. No livro de Manoel da Costa Medeiros sobre a história de Herval, o autor informa: "Pedro Muniz Fagundes, cujas poesias, se publicadas, ainda o sagrariam grande e excelso poeta, faleceu, creio, pelos anos de 1868 a 1870".
Não se tornou, como muitos dos seus pares, nome de cidade, nome de praça, nem de logradouro algum, salvo uma pequena rua em Porto Alegre. Não tem estátua ou data comemorativa, nem trabalhos escolares buscando averiguar sua vida. Porém, o que se sabe é que Pedro Canga vive – ou sobrevive – quase esquecido, mas intrigante, misterioso, provocativo (como deve ser o arquétipo de um guerreiro, poeta e trovador), entre o mito e realidade, nos espaços vazios (por isso infinitos, criativos, desafiadores) de uma época histórica do Rio Grande do Sul.
Sobre o mítico trovador
A fotografia ainda engatinhava na primeira metade do século 19, porém, pelas guerras do período travadas em território gaúcho circulavam desenhistas e pintores que deixaram para o futuro imagens de chefes militares como Bento Gonçalves, David Canabarro e Giuseppe Garibaldi. De Pedro Canga, no entanto, até hoje não se descobriu nenhuma representação.
Há escritos sobre Pedro Canga nos seguintes livros:
- Anuário da Província do Rio Grande do Sul (1889, 1890, 1892 e 1893), de Graciano de Azambuja;
- Ensaio sobre os Costumes do Rio Grande do Sul (1883), de João Cezimbra Jacques;
- Cancioneiro Guasca (1917), de João Simões Lopes Neto;
- História da Grande Revolução (1933), de Alfredo Varela;
- História da Literatura do Rio Grande do Sul (1956) e O Embuçado do Erval – Mito e Poesia de Pedro Canga (1968), de Guilhermino César;
- História do Herval (1980), de Manoel da Costa Medeiros.
Este artigo será incluído na 10ª edição dos Cadernos Jaguarenses, publicação sobre a história do município de Jaguarão, a ser lançada no evento Inventário dos Institutos Históricos e Geográficos do Rio Grande do Sul, no dia 23, no município do sul do Estado, reunindo representantes dos 13 institutos históricos ativos no Estado.