A partir da eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, casais homossexuais resolveram antecipar seu casamento ou formalizar no cartório uma união que ainda nem estava nos planos. Nesta semana, GaúchaZH teve informação de uma dezena de casos desse tipo apenas em Porto Alegre.
Os gays estão correndo para casar porque temem a perda do direito a partir da posse do novo governo, em 1º de janeiro. Atualmente, o casamento homoafetivo está garantido não por lei, mas por resolução do Conselho Nacional de Justiça e decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O receio é de que Bolsonaro, visto como homofóbico na comunidade LGBT+, possa baixar um decreto ou uma medida provisória já no começo de sua gestão, suspendendo imediatamente os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Mais tarde, algum projeto de lei no mesmo sentido poderia ser aprovado pelo novo Congresso, que passa a ter uma composição fortemente religiosa e conservadora.
A Comissão de Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), presidida pela gaúcha Maria Berenice Dias, considera a ameaça real e recomendou aos gays que pretendem casar que o façam logo. Com isso, garantiriam os mesmos direitos assegurados aos casais hétero no que diz respeito a tópicos como herança, pensão e saúde. Segundo o assistente jurídico Roberto Seitenfus, da coordenação do grupo Desobedeça LGBT, quem casar ficará com os direitos garantidos, mesmo que o casamento gay seja colocado fora da lei pelo próximo governo.
— O direito não pode ser revertido, porque quem casou, casou durante o período de reconhecimento do Estado. Não praticou ilegalidade — afirma.
Nesta quarta-feira (7), a analista de produto Isadora Oliveira Serpa, 27 anos, e a desenvolvedora de software Thayse Onofrio, 25, estiveram no Cartório de Registro Civil da 4ª Zona, na Avenida Osvaldo Aranha, para dar entrada no processo de casamento, que ficou marcado para 4 de dezembro. Elas namoram há quatro anos e meio, moram juntas há dois anos e noivaram em setembro. Planejavam casar apenas no final do ano que vem, para ter tempo de organizar finanças, férias e lua de mel. O resultado da eleição fez repensarem os planos.
— Ficamos muito receosas, porque o presidente não apoia a população LGBT+ e não nos reconhece como família. A partir do momento em que ele venceu a eleição, começamos a pensar no assunto e concluímos que tínhamos de antecipar, para garantir direitos. Acredito que uma das primeiras medidas do governo pode ser cancelar o casamento civil entre homossexuais — diz Isadora.
Thayse explica que a decisão das duas foi fazer o casamento no civil agora e deixar a comemoração, com amigos e família, para o ano que vem. Ela observa que a preocupação tem a ver não só com o cenário político, mas com o que identifica como um crescimento do clima de ódio na sociedade:
— É como se as pessoas tivessem saído do armário com seus preconceitos, inclusive pessoas de quem tu não esperavas isso. Eu sou uma mulher, negra e lésbica. Está bem complicado. Estão fazendo comentário racistas nas ruas.
"Nosso medo é de que no futuro não se possa mais nada"
A auxiliar de cozinha Kauana Rodrigues, 26 anos, relata que não tinha planos de casar por enquanto, mas o novo quadro político precipitou sua decisão. Ela e a namorada, a operadora de caixa Isabela Vargas, 18 anos, estão reunindo a documentação necessária para entrar com o processo em um cartório o quanto antes. Integrante da Igreja Anglicana, que autoriza casamentos homoafetivos, Kauana também vai celebrar o matrimônio no religioso, no final de janeiro.
— A decisão foi por medo. Medo acima de tudo. Recebemos mil mensagens sobre isso, de várias pessoas, principalmente da igreja. Telefonamos para o cartório logo depois da eleição, para ver do que precisava. Nossa expectativa é casar antes do fim do mês. Estamos correndo contra o tempo — conta.
GaúchaZH conversou também com um casal de professoras de educação física de Porto Alegre. Elas pediram para não ser identificadas por motivos profissionais. Juntas há cinco anos, as duas já haviam conversado sobre casar, mas não tinham nenhuma pressa. Resolveram acelerar as coisas quando tomaram conhecimento do alerta emitido pela comissão da OAB.
— Foi quando a ficha caiu. Nosso medo é aquela coisa de terror mesmo, de que no futuro não se possa mais nada. No domingo, conversamos, decidimos e consultamos a internet para saber a documentação necessária. Nossa expectativa é fazer o processo até o final do ano, mas se tiver de invadir um pouquinho janeiro, acho que não vai ter problema — diz uma das professoras, de 33 anos.
Na avaliação dela, caso o próximo governo aja para banir o casamento homoafetivo, ela e a namorada poderiam ser consideradas, do ponto de vista legal, apenas como duas amigas que vivem juntas. Nesse caso, temem perder até mesmo os direitos garantidos para as uniões estáveis. A professora diz que já percebe um clima diferente e hostil no ar:
— No colégio em que trabalho, tenho sentido muito isso, todo um discurso de violência e censura. Nas ruas também há um clima de animosidade. A gente continua a andar de mãos dadas, não deixamos de fazer nada, mas agora existe um receio.
A namorada, de 31 anos, conta que, por causa da pressa, o casamento não vai ser como imaginava, organizado e com festa, mas entende que casar agora é a melhor opção:
— Está todo mundo dizendo para nós: não há o que fazer, tem de apressar, para garantir o futuro.
Gabriel Galli, coordenador do grupo Somos, afirma que desde 2017 existe na comunidade LGBT+ uma preocupação com a ameaça de perda de direitos sob um governo comandado por Bolsonaro, o que teria levado casais a pensar em formalizar sua união, mesmo que não cogitassem isso antes. Para ele, no entanto, a questão é mais abrangente do que o casamento homoafetivo.
— Quando falamos em perda de direitos, estamos falando da vivência do cotidiano. Hoje não me sinto mais à vontade de expressar afeto por uma pessoa do mesmo gênero na rua, por causa das agressões que estão acontecendo. Estamos em uma situação muito delicada, e os direitos que temos são frágeis, garantidos apenas por uma interpretação do STF. Com uma mudança de ministros, com uma pressão sobre o STF ou com alguma nova legislação, tudo pode mudar muito rápido — alerta.
Apesar de perceber um aumento da intolerância aos homossexuais por parte da sociedade, Isadora Oliveira Serpa, que vai casar no dia 4, afirma que ela e a noiva não vão mudar seu jeito de ser:
— Estamos sentindo esse clima diferente e vimos muita gente conhecida apoiando o discurso de ódio do Bolsonaro, pessoas próximas da gente, apoiando um discurso que é contra a nossa existência. Pensamos que pode acontecer alguma coisa, quando saímos à rua. Mas não vamos deixar de ser nós mesmas. Eu e minha noiva somos lésbicas e somos transparentes em relação a isso. Não vou deixar de sair de mão dada e de abraçar na rua. Isso é a resistência.