Eram como se fossem duas estrangeiras. Apesar de nascidas no mesmo Estado, expressavam-se em idiomas completamente diferentes e precisavam, por força do compromisso acadêmico e do calendário implacável com os prazos, entender-se. Ao longo de um ano, escolheram um tema, organizaram um projeto de pesquisa e desenvolveram um trabalho de conclusão de curso (TCC), uma das tarefas mais trabalhosas e emocionantes da trajetória de um estudante de graduação. Valéria Deluca Soares de Carvalho, 46 anos, jornalista e professora de Comunicação Social no Centro Universitário Metodista IPA, na Capital, fala português. Sua aluna e orientanda no curso de Publicidade e Propaganda Annanda Ayres, 29 anos, tem surdez profunda e utiliza a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Durante toda a faculdade, Annanda foi auxiliada por intérpretes de Libras nas aulas. O esquema se manteve para a condução das duas disciplinas relacionadas ao TCC, em dois semestres consecutivos. As reuniões para orientação eram realizadas a três: Valéria, Annanda e uma intérprete, em grande parte das vezes Fernanda Santini Romero, 38 anos. Valéria falava com Annanda, Fernanda escutava e traduzia o português para Libras a Annanda, que respondia em sinais para Fernanda, que os oralizava para Valéria. Tão importante quanto a aluna entender as explicações e as tarefas dadas pela professora era a intérprete também estar por dentro de todo o conteúdo, para que pudesse auxiliar Annanda quando fosse solicitada. A estudante optou por analisar os critérios que influenciam a compra dos surdos profundos nos comerciais da televisão aberta. Desde o princípio, a docente defendeu a ideia da produção de um TCC em Libras.
– Se é uma língua reconhecida no país e é a língua primeira dela, era nessa língua que ela tinha que fazer. Eu queria mostrar que qualquer surdo profundo pode chegar à faculdade e fazer um trabalho na língua em que ele se comunica. Não achava justo ela aprender a minha língua para escrever um trabalho. Ela tinha que escrever, na língua dela, um trabalho acessível para a comunidade a que ela pertence, a comunidade surda – justifica Valéria.
A Língua Brasileira de Sinais, como o nome evidencia, é própria do Brasil. Surdos de outras nações usam outras línguas, com sinais diferentes – da mesma maneira que na França se fala francês e, nos Estados Unidos, inglês. Há variações dentro do próprio país e até mesmo de cidade para cidade: Porto Alegre pode ter um sinal para determinada palavra, e Caxias do Sul, outro. Valéria não tinha qualquer conhecimento de Libras no princípio da parceria e pouco avançou: hoje conhece cumprimentos básicos, como “oi” e “tchau”, um sinal que representa carinho e admiração pelo outro e seu próprio nome – o movimento da mão faz referência à franja da professora, forma que a aluna escolheu para nomeá-la (a repórter, Annanda batizou com um L formado pelo polegar e o indicador, representando a letra inicial do nome, e um leve roçar do polegar abaixo dos olhos, chamando a atenção para os óculos).
Improvisando, Valéria transmitia suas mensagens também de outras formas, com gesticulações divertidas de uso corriqueiro entre ouvintes: apontava os dedos indicador e médio para seus próprios olhos e depois para Annanda quando queria dar uma reprimenda do tipo “estou de olho em você” ou, nos momentos mais críticos, quatro dedos da mão passados junto ao pescoço, como uma navalha, indicavam que a situação estava feia.
– A Valéria foi exigente comigo, bem rígida, me dando umas sacudidas quando eu estava precisando. Muito legal – destaca Annanda, em entrevista concedida no IPA duas horas antes de enfrentar a banca de avaliadores, na sexta-feira, 29 de junho, acompanhada pela intérprete Fernanda.
Tânia Regina Ayres, pedagoga aposentada de 56 anos, mãe de Annanda, teve rubéola no início da gestação, descoberta dias após ter ficado doente. A partir dali, seguiram-se 37 semanas preenchidas pela preocupação com a saúde do feto e o risco de um aborto espontâneo. Exames eram realizados regularmente para investigar possíveis deformações físicas e complicações cardíacas.
– Não foi uma gravidez normal. O médico deixou bem claro para mim: alguma coisa ela teria. Se nascesse totalmente saudável, seria um milagre – recorda Tânia. – A gente foi se preparando.
A surdez profunda foi diagnosticada pouco mais de um mês após o parto. Apesar do choque, a família logo se mobilizou, angariando recursos com uma vaquinha para a compra do primeiro aparelho auditivo. Nas escolas por onde passou, Annanda repetiu todas as séries da Educação Infantil até o 4º ano do Ensino Fundamental. Pensava-se que os problemas de compreensão decorriam apenas da surdez, até que um especialista atestou a dificuldade de aprendizagem – os pais nunca souberam se foi consequência da infecção pelo vírus da rubéola ou de uma parada respiratória ao nascer. Do 5º ano até a conclusão do Ensino Médio, a menina frequentou o Colégio Concórdia, onde começou a aprender Libras, deixando de lado gradativamente a leitura labial e a oralização, seus recursos de comunicação até então. Lá, conheceu Dario Falkenbach, também surdo, que entre idas e vindas passou de namorado a noivo.
Há quase três anos, Annanda recebeu um implante coclear (dispositivo eletrônico em duas partes: uma interna, introduzida cirurgicamente atrás da orelha, e outra externa, que fica aparente) no ouvido direito. Com o implante e o aparelho auditivo usado desde a infância, Annanda consegue escutar barulhos e vozes em volume médio – há palavras que não entende porque não foi acostumada a ouvir seus respectivos sons. Hoje ela oraliza alguns vocábulos e frases, às vezes de forma clara, em outras quase incompreensível, como grunhidos. Tânia se comunica com a primogênita falando – as duas se olhando de frente – e também por Libras. Quem tem maior domínio dos sinais é a caçula, a fonoaudióloga Annelise, 25 anos, que fez curso de tradução e interpretação e mantém uma relação muito próxima com a irmã.
O vocabulário dos surdos é mais restrito, explica a intérprete Fernanda. Um exemplo: em Libras, “casa” é representada por um “telhadinho” formado com as duas mãos. Já os ouvintes têm uma série de sinônimos para o mesmo termo, como residência, lar, morada e moradia, que são sinalizados sempre com a “casinha”. Ao ler “residência” em português, o surdo pode não saber do que se trata.
Orientadora e orientanda também conversavam via aplicativos como WhatsApp e Messenger:
Valéria: Dúvidas sobre a apresentação?
Annanda: Eu não entendi
Valéria: Tens dúvidas sobre o PPT (arquivo de power point)?
Annanda: Ah
Ah bom!! Eu entendi!!
Valéria: Gostou das mudanças?
Ficou mais fácil
Annanda: Sim adora
Tranquilo
Eu vou treinar junto intérprete
A pupila aproveitava, ainda, para desabafar sobre os atropelos do final do semestre:
Olá bom dia
Eu não to bem
Disciplina Mídia II e projeto experimental!!
Meus colegas grupos
Segunda-feira – projeto experimental
Quarta-feira – Mídia
Eu estou muito chorando (inseriu um emoji chorando copiosamente)
Eu to preocupado formatura
A produção do TCC foi a culminância de seis anos de vida universitária (Annanda não se matriculava em tantas cadeiras simultâneas para evitar uma sobrecarga por conta de seu ritmo de aprendizado, e a morte do pai, em decorrência de um câncer, no ano passado, também retardou a conclusão dos créditos). O período que geralmente é marcado pelos fortes laços de amizade e pela convivência em grupos foi, para a aluna surda, de notável solidão.
– Percebi que meus colegas ficavam tensos quando eu entrava na sala de aula. Eles não estavam preparados para se comunicar com uma surda. Por muito tempo, minhas amizades no IPA foram só com intérpretes – lembra a formanda, que trabalha como funcionária responsável pelo estoque de uma farmácia.
Quando Annanda era convidada pela turma para uma refeição em conjunto, por mais que alguns tentassem estabelecer contato, a jovem não entendia nada do que estava sendo dito à mesa. Apesar de ficar triste, tentava agir com naturalidade. Com o passar do tempo, conformou-se com esse tipo de barreira.
– As pessoas sempre me encontravam no bar sozinha.
Valéria acredita que Annanda aprendeu muito durante a faculdade, especialmente nos meses finais. Para a professora, tratou-se de um dos maiores desafios de sua trajetória de 15 anos no Ensino Superior. O compromisso assumido com a aluna não ocupava a mente da jornalista apenas nas sessões de orientação ou nas revisões de texto – Annanda estava sempre nos pensamentos de Valéria.
– Eu me colocava no lugar da mãe dela, no lugar dela como filha, no lugar de alguém que quer entender as coisas ao redor. Me imaginava morando no Japão, saindo para comprar pão, olhando para as placas e pensando: “Onde está a padaria?”. Tive que me descolar do meu lugar, fazer o que a inclusão prega, colocar-se no lugar do outro. Esse é o exercício mais desafiador que existe, a empatia. Reforcei muito que ela é capaz de tudo que ela quiser. Ela é inteligente dentro da limitação dela. Olhava para os meus filhos e lembrava da Annanda. Acho que ela não sabe disso, mas ela acompanhava o meu sono porque eu sabia o quão dependente de mim ela era para alcançar esse objetivo. Olhava para os meus filhos, graças a Deus sem nenhum tipo de limitação, e pensava que papel eu tinha na vida da Annanda. Acho que as coisas não acontecem por acaso, então assumi isso intensamente – revela Valéria.
Comportamento do Consumidor: Um Estudo sobre os Critérios que Influenciam a Compra dos Surdos Profundos, como desejava a professora, transformou-se em um TCC acessível. Foram repassados aos avaliadores o link para um vídeo com Annanda sinalizando em Libras, narrado pela professora, e, como suporte, uma cópia impressa em português, cujo texto foi escrito com a ajuda da irmã Annelise e ganhou redação final da orientadora. Antes da gravação, todo o TCC foi vertido para o que se chama de glosa, uma versão simplificada. Por exemplo, o trecho onde se lê “os entrevistados que participaram da pesquisa trazem um dado interessante, considerando o que foi colocado. Eles foram unânimes em dizer que assistem pouco à televisão. Justificam pela falta de acessibilidade” virou “surdos participar entrevista todos avisam importante informação todos TV pouco. Surdos explica falta acessibilidade programa”. Não houve tempo, infelizmente, para a colocação de legendas, o que se transformaria em mais uma entrada para o conteúdo.
– O trabalho sempre é do aluno, nunca é do orientador. O trabalho era dela. Ela tinha que entender o que eu estava instruindo, o que estava pedindo e por que estava pedindo. A construção é dela, o resultado da produção intelectual é dela. A redação do documento em português é minha, com ajuda da irmã dela, nós que falamos português, mas o que você assiste no vídeo é a Annanda, o que os surdos vão poder aprender com o trabalho é construção dela – esclarece a professora, que chorou, sozinha em casa, no dia em fez a última leitura e colocou o “ponto final”.
Diante da banca, composta pelos professores Marcelo Corrêa e Maristela Franco, e dos convidados, Annanda teve 15 minutos para resumir sua pesquisa. Expôs a dificuldade dos surdos em compreender propagandas na TV sem legendas ou janela para o intérprete de Libras, o que faz com que, muitas vezes, eles escolham os produtos dos anúncios protagonizados por celebridades ou que se referem a marcas famosas. Nervosa, ela suspirava alto nas pausas. Provocou um riso solidário na plateia.
– Te acalma – pediu Fernanda, que minutos antes confessara estar com dor de estômago, enquanto oralizava os sinais da aluna para os presentes.
Tânia e Annelise não puderam comparecer devido a uma viagem agendada meses antes. Acompanharam o desafio ao vivo, com interrupções, por uma transmissão de vídeo via WhatsApp, direto do aeroporto de Orlando, nos Estados Unidos. A mãe temia que Annanda trancasse e não conseguisse falar. Aflita, chegou a tentar falar, do outro lado da tela, pela filha.
Em suas considerações, o professor Corrêa ressaltou:
– Seu trabalho serve como crítica social e inspiração também. A acessibilidade é fundamental na comunicação, mas muitos não se preocupam com isso. É possível democratizar a comunicação.
No intervalo, quando a banca se retirou para definir a nota, o clima ficou mais descontraído. Emerson Ayres, 57 anos, policial civil aposentado e padrinho de Annanda, que transmitia o evento para as viajantes na Flórida, brincou:
– Vou gastar todo o salário com uma ligação telefônica! Ela (Annanda) vai precisar passar os seis primeiros salários para o dindo.
Bem alto, numa pronúncia perfeita, Annanda gritou para Tânia e Annelise:
– Te amo!
Na volta dos professores à sala, Valéria, emocionada, tomou a palavra.
– Eu sabia que ela precisava de mim. E mal sabe ela que eu também precisava dela. Obrigada por ter me dado a oportunidade para que eu me reinventasse – disse ela, antes de criar suspense para revelar a informação mais aguardada da tarde: – Grau 10!
Sob aplausos (a audiência com os braços erguidos e as mãos se agitando), as duas se abraçaram, chorando. Valéria fez um coração com as mãos para Annanda. Pouco depois, a formanda postou fotos com familiares, intérpretes e professores em seu perfil no Facebook e vibrou, provocando uma torrente de mais de 550 curtidas e 90 comentários:
Banca apresentação TCC
Aprovada nota 10,0
Agradeço meu pai Edson deus!!
Minha mãe e irmã muito emoção chora!! Sentido muito chorando lado meu pai!! Força estudantes serviço! Apoios famílias
Vai ter formatura ??????? simmmm!! @ IPA – Oficial
No dia 4 de agosto, a partir das 20h, no Auditório Oscar Machado, no IPA, Annanda será a juramentista da turma na cerimônia de formatura, com tradução simultânea. No momento da colocação do barrete e da entrega do diploma, a frase “confiro-lhe o grau de bacharela em Publicidade e Propaganda” será sinalizada em Libras pela coordenadora do curso.