Há uma localidade no Rio Grande do Sul que congrega religião e consumo. Às margens do quilômetro 415 da BR-386, na localidade de Vendinha, município de Montenegro, um descendente de poloneses construiu um shopping de sucata que é, também, ferro-velho, brechó, antiquário e templo católico. Fiéis fervorosos – e compradores com dinheiro no bolso – são recepcionados de braços abertos por um Jesus Cristo de 12 metros de altura que veste um manto de garrafinhas pet em cujo coração está estrategicamente colocada uma colmeia da qual se extrai mel. Nesse local, a ganância não é pecado. Seu nome homenageia a onisciência do Todo Poderoso: Meu Coração Está Aqui.
– O coração dele, o seu e o nosso também estão aqui – resume o responsável pelo Criador de sucata, o eletricista, agricultor, pedreiro, projetista e, ufa, fabricante de sabão Eduardo Malinski, 73 anos, que recebe ZH na manhã de uma segunda-feira tocando uma gaita de boca.
À primeira vista, o shopping da sucata é apenas um galpão de 3 mil metros quadrados que abriga objetos usados como roupas, eletrodomésticos, guidons, brinquedos e até freezer de buffet de sorvete. Em meio ao mundaréu de quinquilharias, cartazes orientam: "Talheres: dois por um pila" e "Esta casa parece um chiqueiro, mas aqui não tem porcos, cada peça é R$ 5".
Um olhar mais apurado desvela um acervo de engenhocas feitas de garrafinhas de plástico, ferros retorcidos e pedaços de vidro, montadas por um sujeito digno do apelido Professor Pardal.
Há estátuas de Jesus, uma igreja na qual cabe apenas uma pessoa, uma gruta semelhante a um relógio-cuco, um globo da morte no qual se adentra para percorrer um caminho simbólico que vai do céu ao inferno. Todas as criações convidam o visitante a interagir e, por meio de mensagens religiosas, ensinam o que é o bem e o que é o mal – e que há consequências em cada caminho.
As obras, como Malinski as chama, nasceram em sonhos, em imagens vistas de relance em espelhos ou a partir de sinais que, segundo o sucateiro, vieram dos céus: a TV que ligava sozinha todos os dias no mesmo horário, a luz que acendeu no quarto, as três batidas na porta de madeira.
Um exemplo: aos pés do Jesus gigante da entrada, o visitante é convidado a pisar em um espelho. Ao olhar para o céu, é possível encontrar outro espelho posicionado na cabeça do messias. Pelo jogo de reflexos entre um vidro e outro, vê-se a pequena imagem de um Jesus sob nosso ombro. Na realidade científica, há uma fotografia posicionada fora dos dois espelhos a poucos metros de distância. Mas, no mundo fantástico de Meu Coração Está Aqui, trata-se de uma prova de que o salvador sempre nos acompanha, apesar de não o vermos. Para completar, anjinhos sobem e descem como se fossem bandeiras a ser hasteadas.
As criações são acionadas por manivelas, pedais, cordas metálicas ou pela força motriz de moinhos d’água. Tudo se mexe e é projetado por Eduardo, um descendente de poloneses que começou a trabalhar aos sete anos, tirando leite de vaca, e cursou até o quarto ano do Ensino Fundamental. Apesar de alguma dificuldade em encadear argumentos ou explicar episódios, ele demonstra criatividade ao apresentar cada invenção.
– Faço tudo o que puder e que não precisa de dinheiro. Porque isso eu não tenho. Tenho estudo? Capaz! De burro, só me falta as orelhas. Ainda assim, engenheiro vem aqui e diz que não sabe como fiz isso tudo. Sou iluminado por Deus – afirma.
A religiosidade está presente em Meu Coração Está Aqui e em quase todas as frases proferidas por Malinski. O shopping-templo surgiu em 2006 em um terreno em Triunfo, após o aposentado se desfazer de uma metalúrgica. Livre do empreendimento, viajou pelo Estado recolhendo sucata com uma caminhonete e revendendo as peças a ferros-velhos. Despejado do terreno, mudou-se para o sítio às margens da BR-386, em Montenegro. Antes, cobrava R$ 5 a entrada, mas agora o acesso é gratuito "porque a propriedade é de Deus, de Nossa Senhora e do povo brasileiro".
No dia que ZH passou no local, apenas dois clientes adentraram nele. No almoço com a reportagem em um posto de gasolina nas redondezas, o aposentado disse que vê sua criação "mais como ponto turístico do que como loja". Os visitantes são atraídos pela fachada extravagante e pelas engenhocas produzidas – cada qual com uma lição de moral.
Uma das mais curiosas é aquela que ele define como "a menor igreja do mundo" – cabe apenas uma pessoa dentro dela. O pequeno recinto, decorado por garrafas pet, recebe fiéis pelos fundos. Uma vez fechada a porta, pelas costas surge uma almofada com a estampa de um capeta, presa a um cabo de ferro.
À frente fica a imagem de Jesus, de braços abertos, pronto para perdoar. Se o viajante solicita a misericórdia em voz alta, para o testemunho do messias (e de Malinski), a porta da capela se abre. A forte luz da beira da estrada, ele diz, significa o paraíso.
– A vida é uma grande disputa entre Deus e o diabo. Jesus quer te iluminar, enquanto o diabo quer te empurrar para o inferno. A gente não vê isso no dia a dia. Mas aqui dá para ver – reflete Malinski.
Saudades do caçula
À frente do galpão, encontram-se xícaras giratórias, típicas de parque de diversões. O brinquedo foi comprado por R$ 1,2 mil em um ferro-velho de Canoas. O sucateiro tentou vendê-lo, mas ninguém se interessou. Deixou, então, para crianças se entreterem.
– Elas vêm direto – diz a esposa, Cristina Malinski, 70 anos. – Esses dias, uma guria se arrodeou tanto que até vomitou.
Os dois estão casados há mais de meio século. Cristina dá risada das criações do marido, diz que todas as suas invenções "se mexem", ressalta, brincando, que toda a criatividade do companheiro constitui uma estratégia para passar o tempo.
O semblante muda quando ela aponta para um cartaz com a foto de Celito Luis Malinski, o caçula dos três filhos do casal. O rapaz, conta Cristina, morreu em um assalto no dia do aniversário da mãe. A tragédia familiar aconteceu há exatos 20 anos, mas para ela foi ontem. Ao contar a história, ela chora copiosamente, uma luva de angústia parece lhe tomar o pescoço enquanto os lábios tremem e as lágrimas caem sobre as lentes dos óculos.
– Isso mexeu com o Eduardo. Por isso ele faz essas obras, quer mostrar para os outros que existe o bem e o mal – diz a mulher.
Talvez não conscientemente, mas a luta do bem contra o mal é exposta de forma literal na obra que pode ser classificada como a mais ambiciosa de Meu Coração Está Aqui: O Globo. Trata-se de uma estrutura esférica de quatro andares, semelhante a um globo da morte daqueles dos parques de diversões. Só que construído com 35 mil garrafinhas pet.
Paraíso e purgatório
Há um caminho predeterminado para adentrar n’O Globo: o visitante realiza o percurso subindo uma escadaria circular passando por 10 portas (como os 10 mandamentos). Cada andar representa um plano bíblico, cuja essência é observada na escadaria, através de um vidro.
No primeiro piso, a Terra tem uma poça d'água que representa o mar e carrinhos em estradinhas, as cidades. No segundo, o inferno traz um pano vermelho tremulando em meio a cartazes com diabos, caveiras e notas de dinheiro. No terceiro, o purgatório: mãos apontam para cima e anjos enfezados buscam redenção. No quarto e último andar, o paraíso tem anjinhos pendurados e Jesus em cartaz de braços abertos, que se aproxima para dar um abraço de forma semelhante a Jigsaw, o boneco do filme Jogos Mortais.
– Levou dois anos para fazer O Globo. Uma vez entraram dois marginais e um falou para o outro que gostava de matar. Eu estava atrás guiando e disse que o destino dele era a cadeia ou o inferno. Ele começou a chorar que nem uma criança – conta Malinski.
As obras não são feitas exclusivamente pelo sucateiro. Ele recebe a ajuda de Maria Sirlei da Silva, 58 anos, que trabalha no shopping da sucata com os Malinski há meia década.
– O Eduardo é que nem o Professor Pardal. A gente acha que o que ele está fazendo não vai dar certo, mas, no fim, sempre dá – afirma.
Há uma obra em construção, anunciada pelo sucateiro de forma pomposa: o Museu da Propaganda, também com trajeto em escada circular. As paredes já estão sinalizadas com retângulos de meio metro cada, ao estilo de anúncio de outdoor, para que os interessados coloquem fotos de seus familiares ou de suas empresas ("Ou o que mais quiserem, para ficar registrado na história"). Cada "anúncio" custa R$ 2 mil.
Algum espaço já foi comprado?
– Por enquanto, está devagar. É que a crise está braba – explica Malinski.
Ao fim do dia, ao despedir-se da reportagem, o sucateiro confessa seu último plano: promover o maior assalto da história do país. Como assim?
– Vai ser um assalto no último dia de vida de cada um. Antes de tu morrer, vou te roubar para o céu – profetiza, poético.
Na despedida, Cristina questiona a equipe de ZH:
– Vão sonhar com o quê hoje à noite? Já sei: com diabinhos – sentencia rindo, com uma candura na voz.
Leia outros textos da série Singular – Um Olhar sobre o Rio Grande
Confira artigos, entrevistas e demais conteúdos publicados no caderno DOC
Serviço
Shopping da Sucata Meu Coração Está Aqui
Na BR-386, quilômetro 415, localidade de Vendinha, em Montenegro.
De segunda a sábado, das 8h às 18h, e domingo, das 10h às 18h.
Entrada gratuita.