Há um ano e sete meses, a jornalista Fernanda Rosito espera pelo momento em que será homenageada pelo filho Enzo na escolinha. A expectativa supera a dos festejos de 40 anos, que ela completará em agosto. Será o primeiro Dia das Mães celebrado com o menino depois de ele estar matriculado em uma instituição de ensino.
— Sonho com esse momento desde que ele nasceu. Eu ficaria especialmente decepcionada se na escola do meu filho o Dia das Mães não fosse comemorado — conta Fernanda.
A jornalista expôs sua opinião nas redes sociais, instigada por um post que questionava a manutenção dos festejos de Dia das Mães e Dia dos Pais diante de uma sociedade em que é cada vez mais evidente a diversidade de arranjos familiares, sem contar uma preocupação mais recorrente: a de não entristecer crianças órfãs ou abandonadas.
O assunto, claro, bateu à porta das escolas e passou a ser discutido com mais afinco nos últimos anos nas comunidades escolares, que vêm buscando alternativas para contemplar expectativas como as de Fernanda e também as daqueles que não têm uma configuração de família dita tradicional. Tanto na rede pública quanto na privada, é assegurada a autonomia das escolas para definir o calendário dessas celebrações.
— A gente sempre trabalha com a questão da diversidade familiar, mas cada escola pensa nessas festividades de acordo com o perfil do aluno que atende, até para que as pessoas participem dessa programação. Tem de ser um momento bom para todos — diz Raquel Padilha, diretora pedagógica adjunta da Secretaria Estadual da Educação (Seduc).
Entre as escolas particulares, a recomendação do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS) segue essa linha de aprimorar o olhar sobre as famílias e decidir pela homenagem mais adequada.
— Muitas escolas têm optado em promover o Dia da Família, uma festa mais universal. Mas isso não quer dizer que estejam desmerecendo o papel de pais e mães. Eles continuam fundamentais no processo de escolarização dos filhos, independentemente do dia. Olhar para essa reconfiguração da família é uma discussão posta nas escolas — diz Naime Pigatto, assessora pedagógica e de legislação do Sinepe/RS.
Paula Saretta, psicóloga e doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que o debate deve envolver toda a comunidade escolar, com a criação de canais para reflexões e sugestões e na tomada de decisões em conjunto para que, de fato, essas iniciativas sejam positivas aos alunos. Ela também ressalta que as preocupações não deveriam recair somente sobre celebrar ou não essas datas, mas serem aprofundadas quanto à representação dessas práticas.
— As escolas precisam rever seu papel social e refletir sobre o impacto que a mera reprodução de discursos sociais, aparentemente inocentes, pode causar na formação das crianças. "Quem queremos formar?" deveria ser uma pergunta norteadora fundamental para a elaboração dos currículos. Dia das Mães, assim como outras datas familiares, deve ter como foco o questionamento de qual família estamos falando — avalia.
Nesse ajuste aos tempos, as escolas vão tateando um caminho o mais acolhedor possível. Boa parte delas inclui o Dia da Família no calendário, mas não deixa de celebrar Dia das Mães e Dia dos Pais. No Colégio Santa Inês, este é o segundo ano em que o Dia da Família é incluído nas festividades, para que pais, mães, avós, babás, tios, tias e os afetos mais próximos dos alunos possam confraternizar com professores, direção e funcionários. A decisão, claro, considerou os novos arranjos familiares, mas foi mais a fundo.
A gente sempre trabalha com a questão da diversidade familiar, mas cada escola pensa nessas festividades de acordo com o perfil do aluno que atende, até para que as pessoas participem dessa programação. Tem de ser um momento bom para todos.
RAQUEL PADILHA
Diretora pedagógica adjunta da Secretaria Estadual da Educação
A psicóloga da instituição, Bianca Sordi Stock, explica que se observou a necessidade de apoiar ainda mais, por exemplo, os casais homossexuais que têm filhos na instituição – muitas vezes, eles vêm de um longo e desgastante processo de adoção. Por outro lado, também ficou evidente o quanto esses encontros proporcionam o compartilhamento de angústias e alegrias entre as famílias.
— Ser pai e mãe, em qualquer tipo de família, é algo muito solitário nos dias de hoje. Cada vez mais, a gente nota esse isolamento, porque, às vezes, não se tem familiares por perto, não se conhece os vizinhos... Esses pais e mães precisam de um espaço de compartilhamento. Quando se conhecem, acabam formando uma rede protetiva coletiva de seus filhos — conta Bianca.
Para as professoras universitárias Suzi Camey e Luciana Nunes, casadas há 27 anos, a decisão da escola da filha de proporcionar um Dia da Família é um passo importante para que famílias menos convencionais se sintam mais acolhidas nas redes de ensino. Luciana tem um motivo extra para apoiar a medida.
— Meu pai morreu quando minha mãe estava grávida de mim. Então, lembro bem de ter de fazer cartão no Dia dos Pais para um pai que eu não tinha. O Dia da Família é mais abrangente — analisa.
Uma festa feliz... ou nem tanto
No Colégio Dom Bosco, em Porto Alegre, a agenda de festas será modificada neste ano, e o fato de contemplar as novas configurações familiares pesou, mas não foi o principal motivo para essa decisão. A coordenadora pedagógica da instituição, Leila Cunha, conta que há um tempo a escola vem observando as implicações de festejar com os alunos Dia das Mães e Dia dos Pais e concluiu que havia uma carga de estresse muito grande nesses projetos, especialmente entre os pequenos. Já havia cuidado especial com os órfãos e um trabalho estabelecido para que as crianças, de um modo geral, soubessem lidar com frustrações. Mas o problema extrapolava situações pontuais.
— Mesmo para os alunos que têm pai e mãe, a gente notava uma angústia nessas celebrações. As mães (ou os pais) por vezes não conseguiam chegar a tempo nas apresentações, a criança começava a chorar, e os que eram pontuais pediam para dar início às atividades. Os próprios pais acabavam se abalando na tentativa de acomodar os colegas dos filhos. Sem contar que muitos desses pais tinham mais de um filho na escola e precisavam se dividir entre as festas. Ficava algo muito angustiante — recorda Leila.
Muitas escolas têm optado em promover o Dia da Família, uma festa mais universal. Mas isso não quer dizer que estejam desmerecendo o papel de pais e mães. Eles continuam fundamentais no processo de escolarização dos filhos, independentemente do dia. Olhar para essa reconfiguração da família é uma discussão posta nas escolas.
NAIME PIGATTO
Assessora pedagógica e de legislação do Sinepe/RS
Frente a situações tão pouco confortáveis, a escola resolveu preparar uma festividade para toda a família em uma data que fique entre o Dia das Mães e o Dia dos Pais. Uma das ideias é transformar a festa em Dia de Quem Cuida de Mim, ampliando a participação de outras figuras afetivas dos alunos em seu ambiente escolar. Os desejos dos organizadores se voltam para que tudo dê certo e que seja bem aceito.
— Tenho certeza de que, com o tempo e vivenciando essa experiência, as famílias vão perceber que a criança estará feliz por ter ali, na sua escola, as pessoas de que ela mais gosta — aposta Leila.
A pedagoga e psicopedagoga Lisandra Pioner é uma entusiasta dessas mudanças no calendário escolar exatamente porque vê nesses preparativos e na execução dessas "homenagens" um desgaste emocional desnecessário. Ela propõe, inclusive, uma autocrítica entre pais e mães:
— Em um mundo tão egocêntrico, não seria importante que as mães e os pais conseguissem ter o desprendimento de abrir mão de suas fantasias maternais e ceder espaço à compaixão realista? Temos de mostrar às nossas crianças que a vida vale a pena por termos alguém para amar, para nos cuidar, para compartilhar momentos, seja esse alguém quem for. É disso que é feito os relacionamentos, de sentimentos, não de nomenclaturas.