O debate sobre bullying voltou à tona com o episódio do Colégio Goyases, em Goiânia, onde um adolescente de 14 anos atirou contra colegas, matando dois alunos e ferindo outros quatro. A investigação ainda está em curso, mas polícia e estudantes apontaram o bullying como um dos fatores que motivaram o crime.
Alunos da escola particular de ensino básico confirmaram que o autor dos disparos era vítima de piadas maldosas. Segundo um colega do 8º ano do Ensino Fundamental ouvido pela polícia, o adolescente era chamado de "fedorento" e "sujo", porque não usaria desodorante. Ele já teria ameaçado de morte alguns colegas e suas famílias. Apesar disso, não havia qualquer registro oficial no colégio sobre esse tipo de comportamento por parte do estudante.
A tragédia de Goyases gerou reflexões e debates: nas redes sociais, houve quem reafirmasse a necessidade de se levar o bullying mais a sério; houve também quem afirmasse que o bullying não era a causa principal de uma atitude tão drástica.
Para três especialistas ouvidas, o bullying, uma situação grave e específica de agressão, tem sido banalizada — a expressão em língua inglesa, que não encontra tradução literal em português, acaba usada para descrever todo tipo de provocação. Elas não tiveram contato direto com o caso de Goiânia e por isso não se arriscam a afirmar que a hostilidade sofrida pelo autor dos disparos configurava mesmo bullying, mas psicólogos concordam ao dizer que esse tipo de violência, apesar de poder resultar em sequelas do curto ao longo prazo, não leva, sozinha, a consequências tão pesadas quanto esse atentado.
— Depende da gravidade do bullying, do tipo de agressão sofrida, do tempo de exposição a ela, do histórico do aluno e da escola com situações semelhantes, do seu próprio histórico de vida e experiência ao lidar com isso. É um conjunto de fatores internos e externos que vai definir qual vai ser a reação. Mas o bullying é sempre algo que vai exigir atenção e ação para não resultar em casos extremos como esse — afirma a pedagoga Cléo Fante, doutora em ciências da educação e especialista em bullying, tema que estuda há quase duas décadas.
O bullying é sempre algo que vai exigir atenção e ação para não resultar em casos extremos como esse.
Cléo Fante
Pedagoga
Desde o dia posterior ao atentado, circula nas redes sociais um texto do psicoterapeuta Jordan Campos defendendo que o caso de Goiânia não foi bullying. Para ele, "suicídio, depressão, implosão" são reações ao bullying muito mais prováveis do que a vontade de pegar uma arma de fogo e atirar contra colegas. O psicoterapeuta entende que "bullying não é a piada sem graça, a ofensa solta ou uma provocação por conta do odor resultante da falta de desodorante".
"O garoto matou porque tinha na sua formação de personalidade uma espécie de autorização para fazer! A identidade deste jovem de 14 anos estava formada em um alicerce que permitia isso. Ele provavelmente iria fazer isso logo, logo... Na escola, com o vizinho, na briga de trânsito ou com a namorada que terminasse com ele, e isso nada tem a ver com bullying", destaca Campos, em um trecho do texto. "Se quem sofresse bullying fosse um potencial assassino, a humanidade estava extinta", conclui.
Bullying não é mera provocação
Psicólogos consideram que entender todo tipo de provocação como bullying contribui para descaracterizar esse tipo de agressão, levando à banalização do conceito. Enquanto provocações, geralmente temporárias e — até certo ponto — inofensivas são comuns, a violência acontece de fato quando esse tipo de agressão é persistente, feita com pessoas mais frágeis, visando à humilhação contínua e minando a autoestima da vítima.
— Provocações acontecem, brincadeiras acontecem. A interação social passa por divergência, por conflitos. Não se pode querer que pessoas que convivem muito nunca briguem — ressalta a psicóloga Carolina Lisboa, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS. — O bullying é diferente, é uma violência. Não é uma brincadeira, não é uma provocação sem importância. É sistemático.
O árbitro que vai definir o limiar entre provocação passageira e intimidação sistemática será sempre o próprio alvo. Talvez alguém não se sinta vitimado por ser chamado de "gordo", por exemplo, enquanto outros podem entender como ofensa ter seu nome posto no aumentativo ou no diminutivo.
Caracteriza também esse tipo de agressão, que pode ser física ou verbal — e também virtual —, uma relação de poder imposta entre o autor, em algum aspecto mais forte, e a vítima, mais frágil.
— Quem sofre bullying tem menos poder. Há um desequilíbrio nas relações, e é a pessoa com mais fragilidade que acaba sofrendo. Porque é mais nova, porque tem um porte menor, porque possui alguma característica diferente dos colegas. E essa relação de poder é mais comum do que se possa imaginar: acontece também na vida adulta, no ambiente de trabalho — afirma Denise Quaresma, professora do curso de Psicologia da Feevale.
Nas escolas, enquanto provocações mais "leves" podem ser solucionadas pelos próprios envolvidos e geralmente passam em pouco tempo, o bullying é mais severo e dificilmente encerrado por vontade da vítima. Por isso, colegas, supervisores, pais e professores têm papel fundamental em alertar sobre o ocorrido e precisam trabalhar juntos para pôr fim à violência.
O risco de sofrer calado
No lado oposto da exteriorização dos sentimentos estão as crianças e adolescentes que, na tentativa de evitar o sofrimento, acabam participando da brincadeira — rindo com os colegas quando falam de seu nariz, do sotaque, do peso, das roupas que usam. Esse tipo de atitude, porém, pode mascarar um grande sofrimento interno: apesar de rir por fora, fazendo parecer que está tudo bem, que aquilo é engraçado, a vítima pode estar escondendo de todos o quanto as provocações fazem mal para ela.
O bullying afeta diretamente a autoestima, e sem autoestima não vamos a lugar nenhum.
Carolina Lisboa
Psicóloga
— Fica uma confusão profunda no emocional da criança. Ela participa para fingir que está aceitando, quando na verdade sofre demais com aquilo. Esse processo dissociativo é muito prejudicial: a vítima perde parte do senso interno de convicção, de certo e errado, e acaba desenvolvendo uma série de problemas se a situação não for superada — descreve a psicóloga e terapeuta cognitivo-comportamental Carolina Lisboa.
Entre os males associados à aparente aceitação do bullying, segundo os psicólogos, estão problemas como depressão, síndrome do pânico, ansiedade exacerbada e hipervigilância, levando a vítima a acreditar que tudo o que ela faça pode estar sendo julgado.
— O bullying afeta diretamente a autoestima, e sem autoestima não vamos a lugar nenhum. A partir disso, a pessoa fica mais ansiosa, começa a apresentar quadros defensivos, a não ser mais ela mesma — reflete Carolina.
Para quem argumenta que o bullying é uma situação antiga, comum no ambiente escolar e que, até recentemente, nunca tinha prejudicado ninguém, a pedagoga Cléo Fante destaca que as marcas desse tipo de violência podem não ser tão visíveis, mas ficam guardadas e dificilmente são superadas sem ajuda:
— Há quem diga que bullying forma caráter, que serve para fortalecer. Ou pense que isso é frescura, coisa de criança. Mas o bullying em contexto escolar sempre existiu. Talvez se tenha a impressão de que a situação está ficando mais grave porque hoje o assunto é mais discutido. E talvez seja efeito de agressões do passado a violência que se tem no nosso país hoje.
O papel do espectador
Apesar da gravidade de casos recentes que podem ter tido o bullying como estopim, especialistas ressaltam que as consequências desse tipo de violência podem, sim, ser superadas. Mas os mecanismos que definem se alguém vai passar por cima das agressões, guardar mágoa até a vida adulta ou achar que, mesmo anos depois, precisa "revidar" a violência sofrida ainda são desconhecidos.
— Não se consegue colocar isso como uma equação matemática. As pessoas que vão lidar melhor com o bullying até podem ter mais autoestima, mas o que mais vai influenciar a superação é o fato de ter apoio da família, dos amigos — sugere Carolina.
Pacientes costumam relatar que o pior aspecto do bullying é se sentir sozinho, ter a percepção de que ninguém se importa com aquela situação. Também por isso especialistas afirmam que a prevenção e o combate a esse tipo de violência passa não somente por agressor e vítima, mas também pela plateia — os espectadores, a quem no fundo se dirige alguém que comete bullying, em busca de visibilidade e da sensação de poder.
Evitar agressões sistemáticas em ambiente escolar passa, segundo a psicóloga Denise Quaresma, também por não achar graça da humilhação alheia, assim negando a principal arma de um agressor:
— O poderoso só tem poder se a gente dá poder a ele.
Columbine e Realengo
No caso de Goiânia, o autor dos disparos revelou ter se inspirado em dois massacres — um recente, outro que completou 18 anos — para cometer o crime, que diz ter planejado por dois meses. O primeiro, em Realengo, na zona oeste do Rio, completou seis anos em abril: um atirador abriu fogo contra crianças e adolescentes da Escola Municipal Tasso da Silveira, matando 12 alunos e deixando outros 13 feridos. O outro, em Columbine, deixou 12 alunos e um professor mortos nos Estados Unidos em abril de 1999. Ambos foram arquitetados por ex-estudantes das escolas.