Leia todas as histórias contadas nesta matéria:
Henrique: "Nunca falei a respeito. Tenho medo de que isso exploda algum dia"
Andrea: "Dizem que eu fiquei igual. As pessoas relembram dela em mim"
Guilherme: "Fiz a tatuagem para tê-lo mais perto de mim"
Fábio: "Como a saudade dói, como a saudade dói"
Maria Lúcia: "Acredito que o convívio dentro do útero deixa uma marca"
A frase famosa diz que o homem está condenado a nascer sozinho e a morrer sozinho. Mas há uma exceção: os gêmeos, que têm a singular prerrogativa de ser gestados e de vir ao mundo com companhia. Talvez por isso, em uma espécie de compensação às avessas, eles experimentem uma forma de solidão única, extrema e radical ao perder o irmão. Trata-se de um desfecho previsível, talvez inevitável, quando duas vidas estão entrelaçadas desde o útero, quando são um emaranhado de nós que se mantêm apertados por décadas a fio, até serem rompidos pela brutalidade da morte.
Frederico e Nicolau Richter, nascidos em 1932, em Novo Hamburgo, tiveram mais cinco irmãos, mas compartilhavam essa característica de formar um mundo à parte, no qual os outros não penetravam. Vocacionados para a música, graduaram-se juntos no Instituto de Artes da UFRGS e formaram um duo de violinos – o Duo Richter – que chegou a se apresentar na Europa, chamando atenção pelo que pareciam ser duas cópias do mesmo instrumentista sobre o palco. Nessa época, as garotas da Cidade Baixa, onde os gêmeos costumavam se apresentar em um mosteiro carmelita, apelidaram-nos de "os 11" – número que eles pareciam incorporar ao caminhar em passo acelerado pelas ruas do bairro da Capital, um ao lado do outro, carregando os estojos com os violinos.
Foram vidas vividas em afinado dueto. Fritz e Klaus – os nomes alemães com que foram originalmente registrados – manobravam seus violinos ombro a ombro na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), viajavam todas as semanas a Pelotas para lecionar em um conservatório local, repartiam a mesma motocicleta, um ao guidão e outro na carona, contavam piadas iguais, partilhavam a mesma voz. Foram colegas em um curso de aperfeiçoamento na Alemanha, casaram-se com duas semanas de intervalo (um tocou no casamento do outro) e, quando a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi criada, tornaram-se ambos professores no novo curso de Música, primeiro com uma carga horária baixa, depois em tempo integral, o que os levou a radicar-se no município da região central do Estado. Há 50 anos, Frederico fundou a Orquestra Sinfônica de Santa Maria e, naturalmente, Nicolau juntou-se ao grupo.
Depois da aposentadoria, problemas de saúde e dificuldades de locomoção impediram o contato diário, mas os gêmeos continuavam a falar-se com frequência por telefone, cada um em sua residência, em Porto Alegre. Até que em 9 de agosto de 2012 um deles morreu. Coube a Nicolau esse fado. A Frederico, restou o fardo: tocar a vida a solo.
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Naquele mesmo dia, o sobrevivente se fechou no escritório e encomendou o morto da forma mais sublime de que era capaz. Compôs a peça Saudade, para violino e piano, dedicada "à memória de meu irmão gêmeo Nicolau". Em seguida, na mesma semana, sem descanso, completou a partitura de um Octeto em Dó Maior, para flauta, oboé, corne inglês, fagote, primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo, também dedicado ao gêmeo. E depois, algo inédito na sua trajetória de compositor prolífico, passou semanas em silêncio, sem compor.
A mulher, Ivone Mendes Teixeira, 76 anos, foi testemunha de como a perda abalou Frederico. Ele já havia enfrentado o luto pela morte de outros irmãos, mas, daquela vez, não parava de falar no assunto, mantinha-se preso à tristeza, sonhava com o gêmeo, descobria que o próprio fim estava em jogo, se aquele que lhe era igual em tudo se fora.
– Eu nasci para a música. Meu irmão também. Nós nos entendíamos. Gêmeos se entendem. Um sabia o que ia na cabeça do outro. Acabou. Mudou. Eu sinto falta dele – relata, em sua forma lacônica, Frederico.