Leia todas as histórias contadas nesta matéria:
Especial: meu irmão gêmeo morreu
Andrea: "Dizem que eu fiquei igual. As pessoas relembram dela em mim"
Guilherme: "Fiz a tatuagem para tê-lo mais perto de mim"
Fábio: "Como a saudade dói, como a saudade dói"
Maria Lúcia: "Acredito que o convívio dentro do útero deixa uma marca"
A quantidade de nascimentos apresenta tendência de queda no Brasil ao longo das últimas duas décadas, mas a ocorrência de gêmeos é cada vez mais frequente. Depois de chegar a um pico de 3,25 milhões de partos em 1999, o país teve 2,9 milhões de procedimentos em 2013, conforme as estatísticas do Datasus. Dentro desse universo, os episódios que envolviam um par de gêmeos passaram de 51.248, em 1997, para 57.956. A voga dos partos duplos – e também dos triplos ou quádruplos – é atribuída à disseminação de tratamentos contra a infertilidade, que favorecem a gestação múltipla.
Em condições normais, a frequência no nascimento de gêmeos varia conforme os grupos étnicos – é mais comum entre pessoas de ascendência africana e mais rara entre asiáticos. No Brasil, o Norte tem menos casos, 15 a cada mil partos, enquanto Sul e Sudeste são os campeões, com 22. De forma geral, estima-se que 1% da população nacional seja de gêmeos, o que abarcaria um universo de 2 milhões de pessoas – quase uma Porto Alegre e meia.
Pesquisadores da área apontam que os gêmeos tendem a construir entre si um vínculo muito estreito, que quem não é gêmeo dificilmente compreenderia. Em parte, isso poderia ser explicado pela proximidade genética – muitos compartilham 100% do DNA. Outra causa estaria ligada à convivência: gêmeos são pessoas da mesma idade, que vivem sob o mesmo teto e recebem estímulos muito parecidos.
– É uma relação especial. Os outros irmãos reclamam: “Poxa, vocês falam para caramba um com o outro. Quero saber também”. Um caso interessante apareceu na Austrália durante um estudo sobre dor de cabeça. Convidaram dois gêmeos a fazer uma ressonância porque um deles tinha muita dor. No final, não apareceu nada no exame do que tinha a dor. No outro, que não sentia coisa nenhuma, apareceu um tumor do tamanho de uma bola de tênis – relata Vinícius Cunha Oliveira, do Registro Brasileiro de Gêmeos.
Após décadas de investigações no município gaúcho de Cândido Godói – que angariou fama de ser a capital mundial dos gêmeos –, a médica geneticista da UFRGS Lavínia Schüller-Faccini observa que, entre os que compartilharam o útero, é incomum existir a proverbial competição entre irmãos. Pelo contrário, o que há é cooperação.
– Um é praticamente o espelho do outro. A individualidade é baseada em dois. A identificação supera a competição – afirma Lavínia.
Isso explicaria as situações dos gêmeos já idosos que continuam a viver juntos e a vestir-se exatamente da mesma maneira, em um esforço de marcar semelhanças, não diferenças. Por isso, quando um morre, o baque costuma ser profundo.
– É uma situação que, com certeza, exige algum suporte especial – afirma Lavínia.
O engenheiro florestal Henrique Greff, 27 anos, sente a falta desse suporte especial todos os dias. Ele até tentou ir a um psicólogo para falar da perda do gêmeo, mas não conseguiu dizer nada. O acompanhamento terminou naquela primeira sessão, malograda. Foi com Zero Hora, depois de mais de três anos de luto, que ele resolveu falar pela primeira vez sobre o assunto – mas com indisfarçável e tremenda dificuldade.
– Para dizer a verdade, nunca falei a respeito. Porque é difícil. Até hoje, tenho uma baita dificuldade. E tenho medo de que isso exploda algum dia. O cara reprime para não transparecer, mas um dia o cara explode. Eu me preocupo que essa repressão possa acabar sendo pior para mim, mas é que eu não achei outra saída – diz.
Henrique e o irmão, Vinícius, eram os únicos filhos de um casal de Tupanciretã. Suas trajetórias moveram-se sobre os mesmos trilhos. Foram colegas da creche ao Ensino Médio, no CTG, na escolinha de futebol, na dança italiana. Depois de terminarem os estudos na cidade natal, tornaram-se alunos da UFSM e passaram a dividir um apartamento alugado no centro de Santa Maria. Dormiam no mesmo quarto, faziam churrasco juntos, eram inseparáveis companheiros de mesa de bar.
O sobrevivente confirma a realidade das insólitas histórias de coincidências entre gêmeos:
– Acontecia muito de a gente ter as mesmas ideias e falar as mesmas coisas. De já saber o que o outro estava pensando. O irmão gêmeo não é uma continuação do outro, é uma coisa simultânea, não é um depois do outro, é os dois juntos, eu acho. É como se fosse um todo. É bem isso.
Na tarde de 26 de janeiro de 2013, depois de um churrasco com amigos, Vinícius passou pelo apartamento e convidou o irmão para uma festa na boate Kiss, a duas quadras dali. Era hábito dos dois sair juntos, e muitas vezes haviam ambos passado a noite na casa noturna, quase obrigatória para universitários da cidade. Mas daquela vez – e ele não sabe explicar o porquê – Henrique decidiu que não iria. Preferiu descansar.
Foi despertado durante a madrugada pelo telefonema de uma colega, que conseguira escapar do incêndio e estava do lado de fora da boate, atordoada, necessitada de ajuda. Ao ouvi-la, lembrou-se imediatamente do irmão. Seguiu até a Kiss, pediu que um amigo ajudasse a jovem que telefonara e pôs-se à procura de Vinícius em meio ao tumulto de choro, sangue e desmaios. Buscou-o nas ruas próximas, nas ambulâncias e nos hospitais, batendo de porta em porta.
Pela manhã, dirigiu-se ao ginásio onde foram reunidos os corpos de grande parte das 242 vítimas fatais da tragédia. Sentou e ficou à espera. Listagens com os mortos eram lidas de tempos em tempos ao microfone. Em dado momento, à tarde, pronunciaram o nome de Vinícius. Ao descrever esse momento, Henrique lança mão de um par de palavrões e de uma única expressão publicável:
– Caiu a casa.
Para poupar os pais, resolveu fazer ele próprio o reconhecimento do corpo. Não conseguiu chegar perto. Confirmou a identidade a metros de distância. De certa forma, era como se estivesse reconhecendo a si próprio. Pensou muitas vezes, mais tarde, que poderia ter sido ele no lugar do gêmeo. Começou a ser assaltado amiúde pela ideia da morte – algo que não acontecia antes – e desenvolveu uma certa fobia de sair de casa à noite, por receio da violência.
– Tinha tudo a ver com precisar me cuidar mais, por só ter sobrado eu de nós dois. Fiquei representando não só a mim, mas a meu irmão também. Isso me atucanou um monte – conta.
O ano final do curso de Engenharia Florestal foi penoso. Henrique não conseguia envolver-se, não conseguia realizar as tarefas, e tem a sensação de que só se formou por causa da ajuda dos colegas. Começou a sonhar sempre com o irmão – abraçava-o nos sonhos, algo que na realidade eles nunca faziam. Em uma tentativa de enganar a dor, pôs-se a aceitar todas as propostas de trabalho que apareciam – sua estratégia para manter a mente ocupada. Sete meses atrás, surgiu um emprego em Estância Velha, na Região Metropolitana. Aceitou-o como uma oportunidade de fuga, a chance de sair de um ambiente que o machucava a cada esquina.
Mas a mudança não significou superação. Henrique parece viver em um limbo. Na nova cidade, ainda não tem laços fortes, e sequer acomodações definitivas ele arranjou.
– Sinto que estou conseguindo retomar a vida, que tem muita sequela ainda. É um pouco como se eu tivesse perdido uma parte de mim. A perda é uma coisa muito presente – reconhece.
Desde a morte do irmão, Henrique encontrou alguns caminhos para se consolar. Um deles foi o espiritismo, “uma forma de acreditar que o irmão está em algum lugar”. Outro veio de uma namorada, que também perdeu um irmão na Kiss e que, por isso, podia compreendê-lo melhor.
– Quando digo o que passei, as pessoas respondem: “Ah, eu te entendo”. Mas não têm como entender. Elas não estão passando pelo que eu estou.