Leia todas as histórias contadas nesta matéria:
Especial: meu irmão gêmeo morreu
Henrique: "Nunca falei a respeito. Tenho medo de que isso exploda algum dia"
Guilherme: "Fiz a tatuagem para tê-lo mais perto de mim"
Fábio: "Como a saudade dói, como a saudade dói"
Maria Lúcia: "Acredito que o convívio dentro do útero deixa uma marca"
Outra circunstância que ajuda Henrique a aliviar a saudade é o fato, surpreendente para ele, de ter incorporado uma série de hábitos e atitudes do irmão – incluindo o jeito de falar. É como se os dois convivessem agora no mesmo corpo. Essa sensação de que gêmeos têm uma identificação tão potente a ponto de enganar a morte – a ideia de que aquele que morre segue vivo no sobrevivente – parece não ser incomum. A cuidadora de pets Andrea Fagundes Silveira, 44 anos, também começou a ficar mais parecida com a gêmea, Adriana, depois que a perdeu. Pessoas próximas dizem que ela incorporou os gestos, o jeito de andar, a risada e até as falas da irmã.
– Dizem que eu fiquei igual. As pessoas relembram dela em mim. Parece que, além de ter o meu jeito, peguei o jeito dela para mim também. Acho que tu nunca perdes o irmão gêmeo, porque ele está sempre junto de ti. A sensação que eu tenho é de que ela está sempre. Sinto a Adriana no meu dia a dia – afirma Andrea.
Essa fusão e confusão de individualidades trouxe também alguns embaraços. Se no passado as duas irmãs gostavam de passar-se uma pela outra e de trocar de identidade para pregar peças em amigos, agora o que acontece é Andrea ser confundida com a gêmea por pessoas que não souberam da sua morte.
Em uma loja, por exemplo, ela foi surpreendida por uma mulher que a puxou e a chamou de Adriana.
– Numa situação dessas, o que tu vais dizer? – questiona a sobrevivente.
As gêmeas nasceram e cresceram na Tristeza, em Porto Alegre, e tiveram mais três irmãos. Só não foram colegas de aula um ano, na 6ª ou na 7ª série (ela não se recorda bem), porque a mãe deu ouvido a conselhos segundo os quais era importante separá-las, para que se desenvolvessem melhor. A experiência foi terrível para Andrea. Sentiu muito a ausência e quase foi reprovada. Na série seguinte, voltaram as duas para a mesma turma.
Aos 19 anos, terminado o Ensino Médio, as manas resolveram sair da casa dos pais, que ficara pequena. Compraram um apartamento em parceria. Moraram nele durante mais de uma década, até que decidiram vendê-lo para investir em um negócio, a montagem de uma lan house. Voltaram a viver com os pais, na Restinga Nova, o quarto de uma colado ao quarto da outra. Moraram juntas, sem nenhum intervalo, por 37 anos, até a morte de Adriana.
– O nosso plano era ficar sempre juntas. Não existia a ideia de "ah, um dia vamos casar e nos separar". Não conseguíamos pensar em não estar juntas. Era uma coisa entre nós. A mãe comenta que já na infância brincávamos só as duas. Para os irmãos, nem ligávamos. A gente fazia um mundo de nós duas – conta Andrea.
A doença, um câncer no cérebro, apanhou Adriana aos 36 anos. Ela ainda sobreviveu por oito meses, e em todos eles foi submetida a cirurgias, que interferiram nas funções cerebrais. Um dia, confusa, falou como se ela é que fosse Andrea. Tinha se transformado na irmã. Ninguém contrariou.
Em outra ocasião, questionou a razão de a tragédia ter acontecido consigo.
– O médico disse que o câncer foi um tiro no escuro. Que estava geneticamente nela e alguma razão o desencadeou. E ela perguntou por que tinha sido escolhida. Ou quis saber por que tinha acontecido com ela, e não comigo. Não sei, porque não conseguimos ir além da pergunta. Quando isso aconteceu, o médico disse que, como somos gêmeas, poderia ter sido eu ou ainda poderia acontecer de o mesmo câncer se manifestar em mim no futuro. Pediu uma tomografia. Não fiz – conta Andrea.
O atendimento a Adriana ocorreu na Santa Casa, onde Andrea trabalhava havia duas décadas e podia estar sempre perto da irmã. Foi lá que Adriana morreu, em setembro de 2009. O choque para a sobrevivente foi brutal:
– Quando caiu a ficha, descobri que somos seres sós.
Passados sete anos, o luto não descansou. Andrea viu os outros irmãos retomarem a normalidade da vida, mas ela não conseguiu. Sente falta da gêmea o dia todo e todo dia, emociona-se ao lembrar ou falar dela, descreve a perda como se um pedaço de si mesma tivesse sido arrancado. Algum tempo depois do óbito, pediu demissão da Santa Casa, porque não suportava passar pelo local onde a mana morrera:
– Parecia que ela ainda estava lá, para sempre na UTI. Toda vez que eu passava e olhava, me sentia muito mal. Não consegui continuar trabalhando lá.