Não é preciso aguardar muito até que desponte um novo caso. São tristemente frequentes os episódios de racismo e injúria racial que provocam rumorosa repercussão no país, principalmente quando envolvem profissionais de destaque em seus campos. Um dos últimos casos teve como vítima a atriz Taís Araújo, que, no fim de outubro, foi alvo de comentários raivosos no Facebook. "Entrou na Globo pelas cotas", "escuridão", "me empresta seu cabelo aí pra eu lavar louça", dispararam os agressores diante de uma foto da artista.
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Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, Zero Hora selecionou três casos recentes para marcar a data: em que ponto estão as investigações dos crimes contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, o comentarista de arbitragem Márcio Chagas da Silva e o goleiro Aranha? Os torcedores identificados no ataque ao então atleta do Santos, no ano passado, já receberam uma penalização (leia mais abaixo), e as demais ações seguem tramitando.
Professor e coordenador do curso de Direito da Unisinos em Porto Alegre, Guilherme de Azevedo destaca que é baixo o percentual de condenação nas ocorrências de injúria racial e racismo, que diferem basicamente quanto ao alcance (veja o quadro abaixo). Para Azevedo, também membro da Comissão para Década Internacional de Afrodescendentes (2015/2024) da universidade, esse tipo de crime não é tratado com a devida atenção em variadas instâncias.
- Isso a gente chama de racismo estrutural. A atenção policial e do Judiciário é baixa. O número de denúncias também é baixíssimo. Há vergonha. Quem leva isso adiante percebe que não é tratado da mesma forma pelas autoridades. Temos um país com mais de 50% da população negra, e a visibilidade do negro é pouquíssima - avalia o professor.
Acesso difícil à justiça, mas mais espaço à discussão
Azevedo sugere que se aproveite o dia de hoje e a visibilidade das situações envolvendo famosos para que se discuta o racismo indireto, mais difícil de ser identificado e combatido do que o ato abertamente racista, com pena prevista em lei.
- Há discriminação no mercado de trabalho, remuneração diferente, diferenciação na contratação - diz Azevedo. - Antes de discutir o racismo, temos de compreender por que somos racistas. Todo mundo diz que não é racista, mas todo mundo conhece algum racista. O Brasil não se descobriu racista ainda. Se o paciente não aceita que está doente, como ele vai aceitar o remédio?
Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou relatório concluindo que o racismo no Brasil era "institucionalizado", o que dificulta o acesso à Justiça pela população negra. Denúncias de pessoas comuns às vezes nem chegam ao Judiciário, conforme a presidente do Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (Codene) e presidente estadual da União de Negros pela Igualdade (Unegro), Elis Regina Gomes de Vargas:
- Há um entrave já no registro da ocorrência: casos de racismo são registrados como injúria racial, uma diminuição da gravidade logo de início. O problema depois é que a Justiça é branca, não consegue sentir na pele o racismo. Os juízes costumam entender que as pessoas não quiseram cometer o crime, e aí não dão a punição prevista na lei.
A antropóloga Margarete Fagundes Nunes, que se dedica ao estudo de relações étnico-raciais e direitos humanos, tem uma visão mais otimista.
- Conseguimos, aos poucos, desconstruir o mito da democracia racial. Antes havia muito mais dificuldade de as pessoas se darem conta disso, havia uma negação maior. As pessoas hoje tendem a abrir espaços para a discussão - diz Margarete. - A luta do povo negro é algo a celebrar, mas também é uma data de denúncia - completa.
MARCIO CHAGAS
Em uma partida entre Esportivo e Veranópolis realizada em Bento Gonçalves, no ano passado, pelo Campeonato Gaúcho, o árbitro Márcio Chagas foi recepcionado pela torcida aos gritos de "macaco", "escória", "lixo". Não era a primeira vez que o juiz sofria aquele tipo de insulto, mas o dia 5 de março de 2014 ficaria marcado também por outro ataque: ao deixar o campo, Chagas encontrou o carro amassado e arranhado, com bananas sobre a lataria e no cano de descarga.
- O que aconteceu comigo não é um fato isolado. As pessoas que são xingadas têm que denunciar. A denúncia gera desconforto, exposição, e a pessoa pode acabar perdendo o emprego. Como a Justiça é omissa nessa questão no Brasil, e não tem punição, as pessoas ficam com receio de se expor, acham que não vai levar a nada - desabafa Chagas, passados 20 meses do episódio.
A punição no âmbito da justiça desportiva foi célere: o Esportivo perdeu pontos na competição, sendo rebaixado à segunda divisão. Há dois processos em andamento atualmente. Na esfera criminal, tramita a ação por injúria racial. Busca-se identificar os responsáveis pelas ofensas em campo e pelos danos ao automóvel. Na 15ª Vara Cível de Porto Alegre, corre a ação de reparação cível, contra o clube de futebol, pelos danos morais sofridos. O Esportivo ainda não se manifestou no processo.
- Espero uma condenação exemplar - diz Antonio Bianchi, um dos advogados da vítima.
Chagas, 39 anos, mostra-se magoado ao relembrar os comentários de quem sugeriu que, apesar do abalo emocional, as agressões teriam deixado um saldo positivo - em referência ao cargo de comentarista da RBS TV que ele assumiu no mês seguinte àquela partida na Serra.
- Sugeriram que teria valido a pena - lamenta. - Não passou pela cabeça deles a possibilidade de eu na verdade ter sido prejudicado, já que eu estava num momento bom da minha carreira?
MAJU
Na noite de 2 de julho, a página do Jornal Nacional no Facebook recebeu inúmeras ofensas a Maria Julia Coutinho, apresentadora da previsão do tempo no telejornal da TV Globo. "Não bebo café para não ter intimidade com preto" e "Quando preto vai à escola? Quando ela está em construção" estavam entre as agressões proferidas por participantes de um ataque coordenado à postagem que exibia uma imagem da jornalista.
No programa seguinte, Maju, como é carinhosamente chamada pelos colegas de bancada, manifestou-se sobre o episódio, ao vivo, a partir de um questionamento de William Bonner:
- Muita gente imaginou que eu estaria chorando pelos corredores, mas na verdade é o seguinte, gente: eu já lido com essa questão do preconceito desde que me entendo por gente. Claro que fico muito indignada, fico triste com isso, mas não esmoreço, não perco o ânimo.
Manifestações solidárias tomaram as redes sociais, com a hashtag "SomosTodosMaju". A apresentadora disse estar feliz com o carinho do público e os milhares de e-mails recebidos.
- Os preconceituosos ladram, mas a Majuzinha passa - finalizou ela.
A Polícia Civil de São Paulo identificou pelo menos três envolvidos no crime de injúria racial, e o inquérito segue em andamento no Departamento de Polícia Judiciária. O Ministério Público está acompanhando os desdobramentos do caso. Segundo o promotor Cristiano Jorge Santos, não há novidades no momento.
ARANHA
As cenas dos torcedores aos gritos de "macaco" ganharam o Brasil. Mario Lúcio Duarte Costa, o Aranha, então goleiro do Santos, foi hostilizado durante um jogo contra o Grêmio na Arena, em Porto Alegre, em agosto de 2014. Estava visivelmente aturdido dentro do campo, e a partida chegou a ser interrompida. Aranha sinalizou para o árbitro que torcedores imitavam gestos de macaco.
- Fiquei bem nervoso. Com o perdão da palavra, fiquei p... Isso dói. Não é possível - falou Aranha.
Mais de um ano depois, aquela noite ainda é vívida para o jogador de 35 anos, hoje no Palmeiras.
- A lembrança que tenho é do som, principalmente quando eu virava para pegar a bola e bater o tiro de meta - contou o goleiro ao programa Fantástico, no dia 8.
O mineiro se entristece com o potencial destrutivo de ataques sofridos por pessoas públicas:
- Quando praticam aquele tipo de ato não é só contra mim.
O processo corre em segredo de Justiça. Segundo o juiz Marco Aurélio Martins Xavier, do Juizado do Torcedor e Grandes Eventos, trata-se de uma "consequência do exagero verificado na veiculação da identidade dos réus, o que lhes impôs uma série de prejuízos". A partir de um acordo, houve uma suspensão condicional do processo criminal - trata-se de um mecanismo que beneficia os cinco envolvidos (uma mulher e quatro homens), mas com caráter punitivo.
A suspensão está atrelada ao cumprimento de algumas condições: proibição de comparecimento aos estádios e obrigação de se apresentar em delegacias, no horário dos jogos, durante 10 meses; apresentações trimestrais no Juizado do Torcedor; e proibição de se ausentar do município de domicílio, por mais de 30 dias, sem autorização judicial. O período de aplicação dessas medidas se encerra ao longo de 2016. De acordo com o juiz Xavier, os processados têm sido fiscalizados. Se ao final eles tiverem cumprido todas as prerrogativas - além de não responder a novos processos -, o processo será arquivado.
Colaboraram Fernanda da Costa e Guilherme Justino