Abraços, carinho e sorrisos em um comercial televisivo de Dia dos Namorados da marca de cosméticos O Boticário acenderam outra polêmica envolvendo a audiência evangélica religiosa.
Instigada por uma fala do pastor Silas Malafaia, uma guerra de opiniões tomou lugar nas redes sociais. No canal de O Boticário no YouTube, consumidores contra e a favor da ideia do vídeo, intitulado Casais, começaram um embate de likes. Até a tarde desta quarta-feira, eram 291 mil "gostei" contra 171 mil "não gostei".
E, enquanto O Boticário se limita a dizer, sobre a reação negativa à peça, que "acredita na beleza das relações", Malafaia afirma, em um vídeo em seu canal no YouTube, que homossexualidade é "comportamento, não condição", e que é direito do cidadão fazer campanha contra empresas que se posicionam a favor de relacionamentos homossexuais:
- Existe uma gama de empresas fazendo propaganda da relação gay. Eu sou contra, é um direito meu. Sou contra e estou aqui para dizer para evangélicos, para católicos, para espíritas, para ateus: gente que acredita na família milenar, (...) homem, mulher e sua prole. (...) Tenho o direito de preservar macho e fêmea, porque essa é a história da civilização humana.
As reclamações chegaram até mesmo ao canal virtual Reclame Aqui, onde a empresa respondeu a alguns consumidores. A um deles, que qualificou o anúncio como um "ato de desespero", O Boticário respondeu que "a proposta da campanha Casais, que estreou em TV aberta no dia 24 de maio, é abordar, com respeito e sensibilidade, a ressonância atual sobre as mais diferentes formas de amor - independentemente de idade, raça, gênero ou orientação sexual - representadas pelo prazer em presentear a pessoa amada no Dia dos Namorados".
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O mito do "boicote evangélico"
Mas qual a dimensão do boicote evangélico, se é que ele existe? Termo que ronda a internet e a imprensa desde o beijo gay em Babilônia (que provocou um discurso do mesmo calibre, do pastor e deputado federal Marco Feliciano, sobre a patrocinadora Natura), o "boicote evangélico", para o professor de Ciências Sociais e do Consumo da ESPM-SP Fabio Mariano, é uma falácia:
- O evangélico é fragmentado. Não se deve definir por uma facção (a de Malafaia) um grupo que é composto por várias igrejas. Posso listar uma infinidade de ramificações que não concordam com ele, como as igrejas batista, presbiteriana, metodista, Renascer em Cristo...
De acordo com Mariano, o que aconteceu foi um ataque político por parte de Malafaia, acolhido por seus seguidores e, de forma geral, por um setor conservador da sociedade que se vê protegendo a noção tradicional de família. E o boicote desse setor conservador, segundo ele, provavelmente não terá impacto nas vendas de O Boticário:
- O efeito (do boicote) foi o contrário. O Boticário deve estar satisfeitíssimo, nadando em braçadas. A partir do início dessa discussão, quem ficou mal foram os conservadores.
Para o especialista, as vendas serão favoráveis porque, com um anúncio como esse, a marca não só se posiciona como uma empresa cidadã, preocupada com questões básicas de respeito e igualdade, mas também expressa preocupação com as pessoas, não com produtos.
A publicitária Gisele Rebelo, diretora da agência Mustache, concorda:
- No caso d'O Boticário, é explícito o posicionamento da marca para com a diversidade dos amores, das paixões. E nesta data publicitária em questão, uma das mais importantes do mercado, é visível que a marca ousou ao posicionar-se em relação a clientes conservadores, mas fidelizou uma fatia de mercado culturalmente mais agregadora e não preconceituosa.
Com mais frisson, O Boticário agora se junta a um rol de outras marcas brasileiras que incluem relacionamentos homossexuais em seus comerciais, como o bombom Sonho de Valsa, que incluiu um casal de lésbicas em um filme sobre beijos, e a Gol, que mostrou um casal gay em sua campanha de Dia das Mães.
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Boticário poderá colher os louros se insistir na posição
Um estudo da JWT Brasil demonstra que, ao mesmo tempo em que as pessoas dizem não se importar com anúncios para homossexuais, elas acreditam que outras não gostariam de vê-los. A pesquisa, realizada em julho de 2014, registrou que 77% dos entrevistados dizem não se importar se as pessoas em anúncios são gays ou heterossexuais. Porém, outros 75%, apesar de não se importarem, acham que a maioria das pessoas preferiria não ver casais do mesmo sexo nesse tipo de peça.
Um pouco por isso, não é possível saber, ainda, como repercutem economicamente campanhas como essa do Boticário. Embora a comunicação seja um canhão para o faturamento, ainda não é possível medir a diferença no caixa da empresa (e de muitas outras que investiram em temáticas polêmicas recentemente), pois o reposicionamento da marca acontece gradualmente. Inclusive porque, como explica o especialista em marketing Roger Estanieski, a audiência que foi atingida e que enaltece a campanha nas redes sociais não necessariamente é a mesma que consome os produtos da marca.
- O que é necessário, aqui, é discutir o objetivo d'O Boticário com a campanha. Não é nenhum disparate dizer que a parcela mais gay-friendly da população é a que tem mais acesso a fontes diferentes de informação, geralmente um público de classes sociais mais privilegiadas e que não consome o produto do Boticário. Minha opinião é de que O Boticário tenta se aproximar de uma parcela levemente diferente de seu consumidor médio e assumiu um risco calculado. Porém, eu daria um braço para ver como se comporta o market share no próximo mês. Minha previsão é de que, se fincar o pé nessa posição, O Boticário possa colher os louros.
Empresa foi notificada pelo Conar
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu, nesta quarta-feira, um processo para analisar o comercial, depois de 30 reclamações de consumidores. O órgão afirma que consumidores contestaram a moralidade da propaganda e que, de sua parte, nomeará um membro do conselho de ética como relator da análise, que deve demorar cerca de 45 dias para sair - tempo durante o qual o anúncio pode continuar sendo exibido. Depois, a peça ainda passará por avaliação de um colegiado, com base na interpretação dos conselheiros e no Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.
O código em questão não tem recomendações expressas - nem contra, nem a favor - sobre a veiculação de cenas que envolvam homossexuais na publicidade. Na seção em que versa sobre a proteção da intimidade, o código condena comerciais que revelem "desrespeito à dignidade da pessoa humana e à instituição da família". Ao mesmo tempo, quando regula a questão da respeitabilidade, afirma que "nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade".
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