A França comemora a vitória da coalizão de esquerda. Li e ouvi pouco sobre as propostas desse bloco, mas muito sobre o motivo da festa e do alívio nas ruas de Paris: a derrota da extrema direita. Já faz tempo que a democracia vem deixando de ser o “regime da maioria” para se transformar no “regime pelo qual eu derroto o inimigo”. Talvez porque as grandes bandeiras que uniam multidões prometeram mais do que entregaram.
Globalização e liberalização dos costumes, da forma como foram percebidas, não resolveram problemas fundamentais, como pobreza extrema, fanatismo religioso e choques culturais. Antes que alguém enquadre este texto onde ele não está, explico: não é uma questão de esquerda ou de direita, mas de realidade concreta.
Há tempos, votamos mais contra alguém do que a favor de outro
Quando Javier Milei grita “Viva la libertad, carajo!”, faltam dois asteriscos, que deveriam remeter a explicações mais aprofundadas. O primeiro seria uma definição de liberdade. O segundo responderia a uma pergunta: “liberdade para quê?”. Não me refiro especificamente a Milei, mas, cada vez mais, pessoas e grupos antidemocráticos usam a democracia contra ela mesma.
Algum tempo atrás, assisti a algumas aulas sobre religião. A professora, uma judia ortodoxa, apresentou uma ideia que mexeu comigo. Ela perguntou: “Qual foi a primeira coisa que D’us criou?”. Ela mesma respondeu: “Um ponto. O limite”. Sem limites, nada teria forma ou função. Não é à toa que a Bíblia começa com a separação do céu e da terra.
De volta ao mundo aqui embaixo, assim como na França, o Brasil também vive uma inversão democrática. Há tempos, votamos mais contra alguém do que a favor de outro. O sentimento de antagonismo é que nos guia. O problema é que, 30 segundos depois de anunciado o resultado da eleição, a missão está cumprida.
O candidato ruim derrotou o candidato pior ainda, ou vice-versa. Restam quatro anos pela frente, sem que tenhamos debatido com o mínimo de profundidade os projetos que deveriam concretizar uma visão de futuro. “Fora Fulano”. “Abaixo Beltrano”. “Morte aos sicranos”. Ficou fácil defender uma causa e ganhar apoio. Difícil é o que fazer com isso depois.