Parecem cabeleiras rastafári empinadas e verdes. Chafarizes de caules espinhentos, espaguetes gigantes amarrados em escoras de madeira. Plantação de pitaias é massa. Conheci uma no fim de semana passado, em Morrinhos do Sul, que fica ao lado de Torres, do outro lado da BR, alguns quilômetros em direção à Serra.
Vi o nome da cidade pela primeira vez em Porto Alegre, na feira orgânica de sábado, na banca do Gustavo e da Elen. As pitaias me deram sementes que eram tomates e que depois eram mesmo pitais. Essa história eu já contei, mas na dúvida, tem um link aqui ao lado. Pra quem não lembra, bom seria ler e voltar. Mas não precisa.
Depois de comprar, comer, tentar plantar e escrever sobre pitaias, o Fernando Mengue, 34 anos, secretário de Turismo de Morrinhos, mandou uma mensagem. Marcamos e desmarcamos a visita algumas vezes. Sábado passado, fui. Conheci três empreendimentos simples e acolhedores que investem no turismo rural – O Caminho das Pitaias, o Recanto Vô Ilário e o Recanto Sobragi. São oito no total, todos comandados por mulheres, fenômeno que ninguém consegue explicar, mas que não deve ser coincidência.
São 200 quilômetros de Porto Alegre. Nas 24 horas que passei lá, conversei com mais de vinte pessoas. Nenhuma delas, em nenhum momento, pronunciou sequer uma vez três das palavras que mais ouço na Capital: crise, Bolsonaro e medo. Cadê meu mundo? Eles falam sobre a vida real e sobre os planos de terminar o galpão de madeira para os turistas. Sobre a planta invasora e o leão baio que alguém jura que viu perto dali. E gargalham. E sorriem.
O Fernando, secretário de Turismo, trabalhava em uma cooperativa financeira, “ganhava mais, mas não me divertia nem a metade do que me divirto hoje”, explica. O salário de secretário é R$ 3,5 mil por mês. Um doce de pitaia para quem adivinhar com quantos funcionários ele conta na secretaria. Errou.
Nenhum.
Algum palpite sobre o orçamento da pasta? Errou de novo.
Cinco mil reais por ano.
E o Fernando barbariza. É cheio de planos e de ideias, muitas delas já germinando na base da parceria e da cooperação. Nos levou ao salão da igreja pra ver a Festa do Produto. Cachos de banana, limões, abóboras de pescoço, mandioca. Tudo pendurado em cordas no teto enquanto os voluntários espetavam e assavam o churrasco. E conversavam. E riam.
O município tem hoje 8% da sua produção agrícola totalmente orgânica. Uma trajetória que começou em 1992, quando dois padres chegaram naquelas bandas pregando sobre os perigos do veneno. “Tinha dias que a gente ia vender a produção em Porto Alegre e não pagava nem o óleo do caminhãozinho”, conta um dos mais experientes agricultores da região. Hoje, ele mora em casa de alvenaria, tem televisão e celular. O filho começou a faculdade. A filha termina o colégio nesse ano e planeja cursar Nutrição.
Morrinhos é pontilhado por incontáveis cascatas e rasgado por dezenas de trilhas. Muitas até por eles ainda desconhecidas. Depois da casa do padre, mais afastada do que tudo, começa a subida de uma hora pela mata, até o topo de morro, para ver o sol nascer. Antes, vencemos um pedaço do caminho a bordo de uma barulhenta Tobata, nome de marca que virou genérico de qualquer pequeno trator que escala as encostas pra trazer as bananas colhidas.
Havíamos dado poucos passos quando o passado passou pela gente.
Dois tropeiros e uma mula, carregando não sei o quê. “Ah, isso é produção da Secretaria de Turismo”, brinquei espantado, porque li que não existiam mais tropeiros. Eles foram trilha acima, logo os perdemos de vista. Nas pedras escorregadias de tanta chuva na véspera, corria um fio de sangue escuro e fresco, provavelmente de cavalo machucado, mas que seguia, porque não passamos por ele. Lá de cima, avistávamos o mar, as lagoas, os montes e um tapete de nuvens que formava rios brancos de vapor nos vales.
Estendemos uma toalha na grama ainda úmida e tomamos café da manhã. Lá longe, o contorno dos prédios de Torres, mais para a direita, Arroio do Sal. E ninguém falou em crise, em Bolsonaro ou em medo.
Quando a gente sai da bolha, a vida acontece de outro jeito. Não entender essa verdade tão simples, isso sim é alienação.