No dia 5 de julho, estreia na Netflix Pedaço de Mim (2024), série que a plataforma de streaming está apresentando como seu primeiro melodrama brasileiro — parece novela, mas não é, porque tem bem menos capítulos (são 17) e não conta com vários núcleos narrativos: todos os personagens giram em torno dos dois principais. Coincidentemente, seus dois intérpretes também podem ser vistos no atual folhetim das nove da Globo: Juliana Paes, a Jacutinga de Renascer, e Vladimir Brichta, o Egídio.
Para o ator João Vitti, que encarna o médico Vicente na trama, Pedaço de Mim "pega o filé mignon das novelas e serve de uma forma concisa, sintética, sem gorduras".
— Tem o essencial da dramaturgia, aquilo que já faz parte da cultura e do DNA do brasileiro, e soma com o tratamento e o acabamento do cinema. Por exemplo, a gente não gravou nada em estúdio, foi 100% locação. E tem todo o cuidado com os planos, a fotografia — disse Vitti em uma rodada de entrevistas por vídeo realizada na semana passada (leia mais logo abaixo).
Pedaço de Mim foi criada por Ângela Chaves, coautora das novelas Os Dias Eram Assim (2017) e Éramos Seis (2019-2020), e tem direção artística de Maurício Farias, dos seriados A Grande Família (2001-2010) e Tapas & Beijos (2011-2015) e dos filmes O Coronel e o Lobisomem (2005) e Hebe: A Estrela do Brasil (2019). A trama começa em 2006. Juliana Paes interpreta a protagonista, Liana, uma terapeuta ocupacional que tem entre os pacientes um adolescente que está perdendo a visão por causa de uma doença degenerativa e é filho da obstetra Sílvia (Palomma Duarte), sua cunhada. Liana é casada com o bem-sucedido advogado Tomás (Vladimir Brichta), com quem mora em um apartamento no Rio com vista para o Pão de Açúcar. Ela já sofreu dois abortos espontâneos, mas não desistiu do sonho de ser mãe. Só que acaba se vendo em um pesadelo. Após descobrir uma traição do marido, sai para uma balada, sofre estupro do irmão de sua melhor amiga, o dono de boate Oscar (Felipe Abib), e, por fim, torna-se grávida de gêmeos — cada um com um pai.
Parece enredo de ficção científica, mas existe: trata-se da raríssima superfecundação heteroparental.
— Eu li em um jornal a notícia de que uma americana teve filhos gêmeos de pais diferentes há bastante tempo e guardei essa história no meu baú — contou Ângela em entrevista por e-mail para a coluna. — Gosto de ter um baú de histórias com recortes de jornais, o que hoje em dia já virou um arquivo de computador. Guardo as histórias da vida real que acho mais interessantes. Sempre me inspiro na realidade, em algum fato que aconteceu, para criar dramas. Pedaço de Mim é um drama cotidiano, uma história de família que poderia acontecer com qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, mas que parte de um acontecimento incomum, quase extraordinário. O tratamento é extremamente realista. É como eu gosto de contar histórias: a partir de um acontecimento, explorar todas as possibilidades dramáticas que isso traz e a forma como os personagens se comportam.
A gravidez gemelar de pais diferentes convida os personagens e os espectadores de Pedaço de Mim a refletir e discutir sobre alguns temas candentes. Nos quatro episódios iniciais, que foram disponibilizados para a imprensa, entram na pauta o machismo estrutural e sua hipocrisia (Tomás pode trair, mas Liana não), a "rede de apoio" que existe justamente para quem já é privilegiado (filho de rico, Oscar tem costas quentes nos seus "vacilos"), a pressão pela maternidade e o direito ao aborto.
— Viver a Liana me fez questionar algumas coisas, o próprio instinto materno, o próprio desejo de maternidade. Acho que a construção desse desejo por ser mãe passa muito por uma pressão social — disse Juliana Paes, mãe de dois meninos, Pedro, 13 anos, e Antônio, 10, filhos de seu casamento com o empresário Carlos Eduardo Baptista. — E eu acho que muitas das discussões, principalmente nesses primeiros quatro episódios, têm a ver com um debate que estamos tendo agora, sobre levar adiante ou não a gestação. Você imagina como conviver com o fruto de um abuso sexual? Como você ressignifica isso para amar tanto um filho quanto o outro? E aí, o que bate nessa discussão de agora é que a Liana tinha uma escolha, era garantido a ela escolher se ela queria ou não levar adiante a gestação, que era fruto de um abuso. Acho que o grande desafio da Liana, e a grande loucura, é que ela tem um filho que é fruto de tudo o que sonhou, e outro filho que é fruto de uma grande violência, de um grande trauma. É possível amar dois filhos igualmente? Durante todo o processo, eu não tinha resposta para essa pergunta. E isso era muito doloroso. As discussões posteriores, elas também são enormes: como é que o pai fica nessa situação? Como é que a família fica nessa situação? Conta-se a verdade para todo mundo? Sob o risco de ser julgada o tempo todo? Ou esconde-se isso? No final das contas, a gente esbarra nessa sociedade que tem o machismo estrutural como um pilar, com essa coisa de culpabilizar a vítima o tempo inteiro.
A seguir, confira a transcrição das minhas perguntas e das respostas de Juliana Paes, João Vitti e Felipe Abib sobre Pedaço de Mim:
Juliana Paes: "Olhar feminino sobre o estupro"
A cena em que a Liana se dá conta de que foi vítima de um estupro me fez lembrar a sequência semelhante da minissérie I May Destroy You (2020). Não sei se você chegou a assistir, mas gostaria de saber se houve filmes e séries que inspiraram seu trabalho em Pedaço de Mim.
Eu achei incrível você mencionar, porque foi difícil pesquisar sobre esse tema, encontrar um olhar sensível sobre essa temática da perspectiva feminina. Existem as perspectivas policiais, o estupro, existem os filmes de julgamento, mas da perspectiva feminina eu achei pouca coisa. E eu assisti a I May Destroy You. E você foi perfeito nessa comparação. O que eu acho muito lindo de Pedaço de Mim e da construção desse momento da trama é essa coisa do tempo. Leva-se um tempo, a vítima leva um tempo para entender. Principalmente porque, como na maioria dos casos, a violência é sempre praticada por alguém que já se conhecia antes, por alguém da família, por alguém próximo. Leva-se um tempo para passar pelos processos todos. O processo de culpabilização, você acha que teve alguma responsabilidade. Depois você leva um tempo, às vezes, para recobrar a memória, você leva um tempo para lembrar que você sinalizou que não queria, até que a ficha realmente cai, você fala "não, eu disse não, eu disse que não queria, eu não estava em condições, eu não estava respondendo por mim, e sim, foi um abuso". São etapas nesse processo. A gente tinha tanta preocupação com esse tempo e de fazer com que o público entenda isso, porque o público não é só feminino, a gente queria tanto que o público entendesse como é difícil, como a memória, às vezes, falha, como, às vezes, a gente mesma não entende. Por isso, gravamos em dias separados, em momentos separados, a mesma sequência. Em alguns momentos, a Liana estava totalmente apagada, em outros dias a gente gravou o ponto de vista dela do acontecimento, em outro momento a gente gravou o ponto de vista dele, depois o ponto de vista da ação geral, de modo que desse ao público esse entendimento de que esse processo não é preto no branco, ele é complexo.
João Vitti: "Esperança no ser humano"
O teu personagem e a da Palomma Duarte têm um diálogo que espelha a situação de muitos homens e mulheres maduros. O Vicente representa aqueles caras que casaram muito cedo e que viram o trabalho atrapalhar o relacionamento. A Silvia representa a mãe solteira que tem um filho atípico, e que é sua prioridade de vida. Gostaria que vocês falassem sobre como esses personagens acabam convidando à identificação pelo público.
Eu acredito que, primeiro, tanto a Sílvia como o Vicente fazem um contraponto a esse inverno rigoroso que o casal Liana e Tomás vive. A gente é o primeiro vento, a brisa da primavera, eu diria. O que não exclui as tempestades que existem como em qualquer dia a dia da vida. A Sílvia tem essa superpreocupação com o filho. Ela é mais tensa com o filho do que o próprio filho é com sua questão da saúde. Ele é mais bem resolvido do que ela nesse aspecto. Já o Vicente é o cara que está desacelerando esse momento de trabalho e quer, talvez, desfrutar mais a vida, viver mais a vida, e reencontra essa mulher com quem lá no passado teve uma história, um namorico de faculdade. Isso não estava na sinopse, foi uma coisa que eu e a Palomma criamos. Então, o Vicente, quando ele reencontra a Sílvia, ele é um homem que não coloca o trabalho em primeiro lugar. Ele é um cara que cria um espaço, um ambiente para que a Sílvia possa entrar, embora ela não entre, relute bastante. E ele é um cara, ao contrário dos personagens masculinos que a gente vê, o Oscar, o próprio Tomás, valoriza a mulher. O Maurício, quando me convidou para fazer essa série, falou que a Sílvia e o Vicente são solares, enquanto Liana e Tomás é aquela nuvem preta de tempestade. Que bom quando você fala assim, que as pessoas se identificam mais rápido. Para mim, isso soa como, nossa, eu ainda posso ter esperança no ser humano, no ser humano que consegue enxergar o outro ser humano, que consegue ter empatia. Porque um cara egoísta, um cara ambicioso, um cara perverso, ele é incapaz de enxergar o outro. Ele atropela, ele mata, ele exclui. E a gente vive uma sociedade onde esse tipo de comportamento é, infelizmente, fomentado também. A luta que eu mais faço na minha vida é da gente resgatar a nossa melhor humanidade. Quando a gente se embasa nela, consegue encontrar caminhos, saídas onde todos avançam. É como se cem pessoas dessem um passo juntos, ao invés de um que dá mil passos e larga todo mundo para trás, que se dane.
Felipe Abib: "O cara maneiro que é nocivo"
Teu personagem, o Oscar, digamos que ele é o pior dos homens. Além de ter estuprado a Liana, distribui drogas na boate, favorece o abuso sexual de uma adolescente, usa a influência do pai rico para se livrar dos problemas com a polícia e a Justiça, pode estar envolvido na morte do melhor amigo... Gostaria de saber como foi interpretar uma pessoa tão abjeta assim e o quanto o teu passado de comédia ajudou ou não nesse papel.
É muito curioso, porque eu comecei no audiovisual com o Maurício Farias. Fiz umas comédias, fiz o Vai Que Dá Certo 1 (em 2013) e o 2 (em 2016). Eu fazia muito teatro, e no teatro a gente acaba fazendo tudo, né? O que eu gosto em novelas é que às vezes tem essas duas facetas. Assim como na vida real. Você pode ser engraçado, mas logo você está passando por uma situação extremamente dramática. E eu fiquei muito feliz quando o Maurício me convidou porque eu tinha feito recentemente uma outra novela em que eu também exercia essa vilania, Quanto Mais Vida, Melhor! (2021), e justamente contra o Vladimir Brichta. Então, já tínhamos uma relação de intimidade, de poder apresentar essa energia e ele receber. O difícil é perceber todos os gatilhos que o meu personagem representa. Em 2006, quando Pedaço de Mim começa, talvez eu não parecesse um cara tão ruim. Seria um cara maneiro, um amigão. Mas no momento em que trazemos o ponto de vista da pessoa que sofreu o abuso, da pessoa que foi maltratada, você percebe o quão perigoso é esse tipo de comportamento na sociedade. E eu queria trazer esse cara para muito perto do público. Em alguns momentos, trazer esse humor, como você falou. Eu quero que ele seja legal, que ele dê um beijinho na irmã e que ele trate ela com carinho. Porque essa é a dubiedade desse homem.