Estreia nesta quinta-feira (1º) nos cinemas brasileiros o filme argentino que se tornou sensação entre os fãs de terror: O Mal que nos Habita (Cuando Acecha la Maldad, 2023), escrito e dirigido por Demián Rugna, 44 anos (clique aqui para ler sobre o longa-metragem).
O cineasta é um habituê do Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Em 2011, ele e Fabián Forte ganharam o prêmio de melhor filme ibero-americano por Malditos Sejam. Sete anos depois, Rugna voltou a ser laureado, dessa vez por um trabalho solo, Aterrorizados. Participou também das mostras de 2019, com Você não Sabe com Quem Está Falando, e de 2023, como um dos realizadores da antologia Satanic Hispanics. Em abril, na edição que comemora os 20 anos do Fantaspoa, estará novamente na capital gaúcha, para uma sessão especial de O Mal que nos Habita e para um show da sua banda de heavy metal, a Pasco 637.
— Acho que a primeira vez que viajei para fora do país para apresentar um filme meu, o Malditos Sejam, foi no Fantaspoa de 2011. Desde então, tenho um carinho muito grande pelo festival e pelas pessoas do festival, pelos organizadores. É um lugar muito divertido onde encontro um público maravilhoso e muitos realizadores que estão na mesma situação que eu. Quando você vai, fica triste ao sair — disse Rugna em entrevista exclusiva à coluna.
A conversa por e-mail aconteceu por intermédio de João Pedro Fleck, diretor do Fantaspoa. Confira, a seguir, inspirações e bastidores de O Mal que nos Habita. Mas atenção: pode haver spoilers do filme.
Qual foi a fonte ou as fontes de inspiração para escrever O Mal que nos Habita?
As inspirações do filme são várias. Uma delas é a minha visão sobre como os meios de comunicação e as redes sociais fazem com que as pessoas sintam ódio e espalhem esse ódio de uma forma tão rápida. Sempre tive vontade de escrever uma história sobre como um meio de comunicação pode nos alienar e levar-nos à loucura a ponto de machucarmos a nós mesmos. Depois, muitas ideias que tinha na cabeça, em relação a esse roteiro, culminaram neste filme, que traz essa ideia de loucura contagiosa e de manipulação das mentes das pessoas. Também há muita inspiração no que vejo acontecer com as populações afetadas pelas fumigações no meu país, as pulverizações com pesticidas feitas indiscriminadamente e que produzem doenças. Muita gente no interior, muitos trabalhadores do campo sofrem com essas doenças, então sempre pensei em como seria para uma família muito pobre, no meio do nada, estar doente por causa disso. Certa vez imaginei o que aconteceria se, em vez de uma doença, fosse um demônio. E o que aconteceria com a sociedade se, em vez de uma doença, houvesse um demônio?
O filme nos mostra o mal como uma espécie de vírus capaz de contaminar a todos. Existe como estancá-lo? Existe forma de combate?
Bom, a forma de deter a este mal é uma grande interrogação também para o espectador, porque se supõe que o controlam, se supõe que há gente que sabe como fazê-lo, que são especialistas, que o Estado os leva, os manda de um lugar para outro para combater esses demônios, matá-los antes que nasçam. Mas a ciência exata é mais uma espécie de controle do que uma cura definitiva, porque essa maldade sempre aparece e volta a aparecer. O que fazem é tentar controlá-la. Fica, acredito eu, no imaginário do espectador, aberta essa pergunta: será possível vencer este mal? E às vezes a própria realidade de cada um, da vida, do que se vê, pode dar essa resposta. Na minha opinião, acredito que o bem precisa do mal para poder existir e mutuamente também. Então, parece-me que é algo o qual vamos estar combatendo toda a vida. E às vezes eles vão ganhar e às vezes vamos perder. Mas no filme prefiro que fiquem para o espectador essas perguntas.
Um crítico disse que a moral do filme é: o fato de existir o Diabo não significa que exista Deus. Pode comentar?
Não havia lido esta pergunta antes e te respondi algo parecido. De fato, não sou uma pessoa crente, não sou uma pessoa religiosa. Contudo, compreendo esse balanço do bem e do mal como parte da vida de alguém e também como parte do ser humano. Tentamos fazer as coisas bem e ser boas pessoas. No entanto, não somos 100% bons o tempo todo. Temos nossos lados obscuros, e o mundo, assim como a sociedade, também tem. Quer dizer, não é que Deus não exista, nem que o bem não exista. O que eu proponho, neste filme, é que as religiões morreram. E, de certa forma, o homem tem que fazer uso da sua ciência para buscar uma maneira de combater esses demônios. Mas o que eu levo deste niilismo é a figura da religião, sobretudo a católica. Ou seja, estou retirando do tabuleiro as formas que concebemos para o combate contra o demônio durante tanto tempo. Isso não significa a morte de Deus, mas sim da religião.
Uma das virtudes do filme é que possibilita visões alegóricas. O embichado pode ser fruto de um elemento sobrenatural, mas também da omissão do Estado, por exemplo. E também funciona como um alvo de preconceitos típicos da sociedade.
Fico encantado que sejam feitas leituras diferentes, porque o filme propõe ao espectador também ser parte da construção desse mito e o faz sem a necessidade de explicar tudo, deixando coisas em aberto e mostrando a sociedade tal qual é. Quando vemos a negligência de algum policial que não tinha muito interesse ou que o governo demorou muito em enviar a solução, falamos da sociedade como ela é, pelo menos na Argentina e em grande parte da América Latina. Há também uma alegoria sobre o surgimento de pensamentos mais de direita, mais fascistas; pensamentos que crescem nos meios de comunicação, que se instalam na mídia e que enlouquecem as pessoas. Daí a ideia das novas gerações, que são os meninos cooptados por esse Messias que está chegando, esse Messias que vem e se mete na cabeça das pessoas que pode controlar ou das mentes frágeis, como podem ser as mentes dos meninos ou dos animais ou de algumas pessoas — não todas.
Obviamente, o embichado expõe também o egoísmo das classes (mais altas); a negligência; como podem se deixar influenciar seja por crenças, seja porque lhes dizem o que têm de fazer. E e me pareceu uma boa mostrar no filme três classes sociais muito marcadas: os estancieiros do campo — os poderosos —, a classe trabalhadora — facilmente convencível — e os muito humildes; e como esse mal afeta a sociedade, podendo traçar um paralelo com como a sociedade reagiu à pandemia. Como cresceu o egoísmo, como cresceram as teorias conspiratórias, a desconfiança dos vizinhos; cumprir regras para evitar contágio; e duvidar até mesmo da ciência. A sociedade é isso que se viu na pandemia, algo do qual se fala no filme sem ter sido escrito durante a pandemia, mas sim dois anos antes.
Pode falar sobre a cena do cachorro? Considero uma das mais chocantes dos últimos anos. A gente intui que algo ruim vai acontecer, mas não espera que seja aquilo.
Bom, sim, a cena do cão... O filme te prepara para que algo terrível aconteça durante 20 minutos. E quando acontece, eu, como roteirista e diretor, preciso que aconteça mais do que você estava esperando. O fator surpresa de como se mostra é, acho eu, a virtude do filme: se preparar para algo e depois se surpreender porque o que aconteceu foi muito mais do que estava preparado. A criação é simplesmente pensar como mostrar, primeiro, o que eu quero mostrar. Neste caso, precisava tanto da cena do cachorro quanto da cena das cabras. Que seja brutal, que tenha tanta brutalidade, que deixe o espectador em choque. Então, escolhi colocar a câmera muito perto de tudo o que se mostra, sem piedade. E depois é começar com os storyboards, juntar-me com dois especialistas de efeitos especiais, com o diretor de fotografia, e discutir sobre tudo. Eu, como diretor, já tenho mais ou menos uma ideia de como resolver, e depois vou me nutrindo das ideias dos outros e aperfeiçoando a ideia original. Neste caso, foram todos efeitos práticos. O cachorro é real o tempo todo. E depois substituímos alguns bonecos digitalmente por partes humanas dos atores. Você está vendo um boneco mas não está vendo um boneco. É um trabalho muito artesanal e de planejamento ao detalhe. Às vezes funciona, às vezes não funciona tanto e às vezes você tem que improvisar.