A equipe que subiu ao palco do Palácio dos Festivais para apresentar Mussum: O Filmis foi a maior entre os seis títulos na competição de longas nacionais do 51º Festival de Cinema de Gramado (eu contei 26 pessoas, uma a mais do que O Barulho da Noite). Também foi a que mais se demorou nos discursos (coisa de 20, 25 minutos), já que vários integrantes usaram o púlpito nesta quinta-feira (18): o ator Ailton Graça, intérprete do personagem principal, o sambista e humorista Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), que fez sucesso na música (com o grupo Os Originais do Samba), na TV e no cinema (primeiro na Escolinha do Professor Raimundo, depois com Os Trapalhões), o diretor Silvio Guindane, a atriz coadjuvante Cacau Protásio, o roteirista Paulo Cursino, o produtor André Carreira...
Mas o que marcou essa apresentação foi uma ausência sentida e apontada por Nando Cunha, ator que faz uma participação na pele de Grande Otelo (1915-1993). Ele reclamou — com razão — que, na noite anterior, havia um batalhão de fotógrafos para retratar a equipe de Uma Família Feliz, suspense estrelado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini. Poucos perfilaram-se ao pé do palco diante do grande e majoriatariamente elenco negro de Mussum: O Filmis, ainda um fato noticioso, apesar de filmes como Medida Provisória (2020), de Lázaro Ramos, e Marte Um (2022), de Gabriel Martins.
— É uma estrutura racista, é um sistema racista — afirmou Cunha.
Essa não foi a única ausência notada: não houve as vaias rotineiras puxadas por alguns jornalistas e profissionais de cinema durante os comerciais dos patrocinadores, porque o da Havan (cujo dono, Luciano Hang, é apoiador de Jair Bolsonaro) foi retirado do ar. A justificativa divulgada pela organização do Festival de Gramado foi de que "as entregas contratuais foram finalizadas na última quarta-feira, 16".
A sessão desta quinta também exibiu o documentário Anhagabaú, dirigido pelo gaúcho radicado em São Paulo Lufe Bollini, que busca conectar os conflitos pelo território da comunidade indígena Guarani Mbya com a resistência da maior ocupação artística da América Latina, a Ouvidor 63, na capital paulista, e o grupo Teatro Oficina Uzyna Uzona. Ainda na programação, vimos os curtas Mári Hi: A Árvore do Sonho (RR), realizada pelo yanomami Morzaniel Ramari, e Cama Vazia (SP), de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernadet, que registra com um encadeamento de fotos o período em que este último, roteirista e crítico de cinema, ficou hospitalizado. Na narração em off, Bernadet discute a "industrialização da longevidade" e formas de impedir que o corpo e a vida virem produtos, o que inclui o suicídio assistido. Com apenas seis minutos, talvez tenha sido o curta-metragem mais impactante da disputa.
Mussum já havia sido biografado no documentário Mussum, um Filme do Cacildis (2018), de Susanna Lira, disponível no Amazon Prime Video. Com estreia nos cinemas prevista para 2 de novembro, a dramatização Mussum: O Filmis foi escrita por Paulo Cursino (roteirista da comédia Tudo Bem no Natal que Vem, com Leandro Hassum) a partir da biografia Mussum: Uma História de Amor e Samba, assinada por Juliano Barreto e lançada originalmente como Mussum Forévis: Samba, Mé e Trapalhões, em 2014. O longa-metragem é o primeiro dirigido pelo ator Silvio Guindane, visto recentemente nas séries Segunda Chamada (2019-2021) e Bom Dia, Verônica (2020-2022).
O início é trôpego. Após a gravação de um esquete solo d'Os Trapalhões, Mussum recebe a notícia de que sua mãe foi hospitalizada. A direção de fotografia de Nonato Estrela e a trilha sonora de Max de Castro são de melodrama piegas, e um flashback com um efeito estranho nos leva para a infância pobre do menino Antônio Carlos (encarnado por Thawan Lucas Bandeira), em uma favela um tanto cenográfica, algo estilizada.
Mas, no papel da mãe, a comediante Cacau Protásio (do seriado Vai que Cola) começa a colocar o filme no eixo. Com um registro bem mais contido do que o habitual, ela estabelece a importância que Malvina teve na formação do filho. E faz isso com bordões, claro: "Burro preto tem aos montes, mas preto burro não dá!". (Depois, já na pele da grande Neusa Borges, Malvina dirá outra frase de levarmos para a vida: "Não se pode sentar em dois cavalos com a mesma bunda".)
Na juventude, o protagonista é interpretado por Yuri Marçal, em ótima caracterização. Nessa fase, enfatiza-se a paixão pelo samba e os primeiros conflitos familiares decorrentes das exigências profissionais. Também aí, surge a questão do álcool: o filme não esconde que Mussum gostava bastante de beber — quase sempre está com um copo de cerveja ou de uísque nas mãos —, condição que, segundo seu biógrafo e o longa-metragem, nunca o impediu de trabalhar nem gerou vexames. E que acabou sendo incorporada pelo personagem televisivo.
A transformação definitiva de Antônio Carlos em Mussum, já no corpo de Ailton Graça — em estado de... graça —, se dá quando ele é contratado por Chico Anysio (Vanderlei Bernardino) para atuar na Escolinha do Professor Raimundo. A sequência da troca de figurino, com um toque de gênio de Chico, rendeu aplausos em cena aberta no Palácio dos Festivais. Aliás, houve uma comunhão do público com o filme: algumas piadas são telegrafadas, mas mesmo assim provocaram risadas. Entre os momentos engraçados, estão aqueles em que os personagens erram seus exercícios de futurologia. Como quando Mussum tranquiliza seus colegas de Os Originais do Samba, acreditando que o programa de TV d'Os Trapalhões seria coisa de um ano, no máximo dois — só foi terminar na década de 1990.
O irônico é que algumas das passagens com os outros três Trapalhões — Renato Aragão, o Didi (Gero Camilo), Manfried Sant'Anna, o Dedé (Felipe Rocha), e Mauro Gonçalves, o Zacarias (Gustavo Nader) — despertaram "lágrimis", como diria Mussum. Bate uma nostalgia forte da infância nas cenas que reproduzem a vinheta em animação do programa de TV e momentos antológicos, como os clipes paródicos de Morena de Angola (canção de Clara Nunes) e Terezinha (de Chico Buarque, na voz de Maria Bethânia).
Mais adiante, haverá outra cena funga-funga, a do monólogo de Mussum para crianças e adolescentes na escola de samba da Mangueira, onde o ídolo fala sobre as barreiras do racismo, da pobreza e da desigualdade social e estimula sua audiência a sonhar: 'A gente pode tudo". É uma frase que casa muito bem com outro trunfo de Mussum: O Filmis: a celebração de negros fundamentais na arte brasileira. Silvio Guindane fez uma espécie de retrato transgeracional e multidisciplinar. Além do próprio humorista, aparecem Cartola (Flávio Bauraqui), Grande Otelo (Nando Cunha), Elza Soares (Larissa Luz), Jorge Ben (Ícaro Silva) e Alcione (Clarice Paixão).