A Tela Quente desta segunda-feira (28) exibe um dos eventos cinematográficos do ano. Às 22h25min, vai ao ar na RBS TV Medida Provisória, o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Lázaro Ramos, que atraiu quase 500 mil espectadores às salas de cinema.
Estrelado por Alfred Enoch, anglo-brasileiro que fez o bruxo Dino Thomas na franquia Harry Potter, Taís Araújo, esposa do ator e diretor baiano, Seu Jorge e Adriana Esteves (no papel de vilã, é lógico), é uma adaptação da peça teatral Namíbia, Não! (2011). O espetáculo foi escrito por Aldri Anunciação e teve direção do próprio Lázaro.
A trama está ambientada em um futuro próximo. O advogado Antônio (Alfred Enoch) decide processar o Estado brasileiro, solicitando uma indenização histórica à população negra por conta da escravidão e do racismo. A chamada reparação social custaria R$ 900 bilhões, um custo inconcebível para os cofres públicos.
O governo federal contra-ataca. Graças à ação de personagens como a burocrata Isabel (Adriana Esteves) e o recém-empossado ministro da Devolução, decreta-se uma medida provisória (MP) que obriga a "voltarem" para a África os cidadãos negros — ou melhor, cidadãos de "melanina acentuada", tecnicismo que escamoteia o racismo. A ficção ecoa fatos: a cena que reconstitui a aprovação da MP no Congresso alude à votação do impeachment de Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, e a polícia entra em campo para acelerar as expulsões — é o corpo negro sendo, como na realidade, o principal alvo da violência policial. O autoritarismo gera medo e caos, mas também protestos e um movimento de resistência, o Afrobunker (por onde circula o rapper Emicida, em participação especial).
Entre os resistentes, estão Antônio e seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), confinados em seu apartamento no Rio para evitar serem "devolvidos". Mas em algum momento eles terão de sair para tentar encontrar a esposa do advogado, a médica Capitu (Taís Araújo), supostamente desaparecida.
No teatro, a história era conduzida em clima de comédia absurda. No cinema, esse gênero é mesclado ao drama político e ao thriller de suspense. Não à toa, Lázaro convocou como diretor de fotografia Adrian Teijido, que trabalhou em episódios das séries policiais Narcos (2015-2017), Irmandade (2019) e Dom (2021) e no filme Marighella (2019), e como diretor de arte Tiago Marques, de Tropa de Elite 2 (2010). Já a edição ficou a cargo de Diana Vasconcellos, com larga experiência em títulos cômicos, desde aventuras dos Trapalhões, na virada dos anos 1980 para os 1990, até os recentes Tudo por um Pop Star (2018) e Cinderela Pop (2019).
Medida Provisória remete à obra do cineasta estadunidense Jordan Peele, que adota um tom sinistro, bizarro e satírico para discutir temas como a perpetuação da escravidão, o racismo estrutural, a normalização da agressão, as tentativas da sociedade de seu país de apagar e reinterpretar o próprio passado de exploração e violência, o preconceito disfarçado sob o mito de que na esfera cultural da atualidade os negros têm algum tipo de vantagem e a diferença brutal entre brancos e negros nas estatísticas policiais. O próprio Lázaro Ramos, em entrevista de divulgação, admite a inspiração:
— Quando Jordan Peele veio com Corra! (2017), eu estava no meio do processo com meu filme, então eu entendi que havia outra maneira para contar a história. Não quero comparar com os filmes que ele faz, mas acho que podem pertencer à mesma família.
O primo brasileiro de Corra, Nós (2019) e Não! Não Olhe! (2022) tem virtudes inegáveis, a começar pela abordagem do racismo com uma pegada pop e universal — evidenciada tanto na mistura de gêneros quanto na escolha do elenco (Seu Jorge é um nome reconhecido mundialmente, e Lázaro disse que escolheu Alfred Enoch pensando em "abrir caminho para o filme fora do Brasil"). É importante popularizar os temas da desigualdade racial e dos riscos da polarização e do extremismo, e a extrapolação serve como um alerta à luta contra o racismo estrutural. Nesse sentido, a expatriação dos afrodescendentes é inicialmente voluntária — como ocorre em relação às cotas universitárias, brancos querem aproveitar a oportunidade —, e a comunidade negra zomba desses planos que parecem piada, até perceber a gravidade da coisa.
Mas o elenco revela-se um ponto fraco. Em raro papel de protagonista, Enoch não faz mágica — pena que Lázaro não quis dirigir e atuar. Em outra opção que cobra seu preço, o diretor deu um papel de relativa importância (Elenita) para Diva Guimarães, alfabetizadora e professora de educação física aposentada que foi sensação na Festa Literária de Paraty (Flip) de 2017. A homenagem é válida, mas o amadorismo da atuação chama a atenção. Seu Jorge dosa densidade e humor, só que seu personagem soaa como uma charge ambulante, embora algumas de suas tiradas sejam de fato ótimas, como esta sobre identidade: "Se parece preto, é preto".