Havia dado por encerrada a série de textos sobre casais em viagem de Ushuaia ao Alasca, após contar as aventuras de Ale & Duda e Tais e Luiz. Porém, mal tinha publicado e um leitor comentou: bacana os viajantes indo de motor home até "a última fronteira", mas ele achava ainda mais fantástico um casal, de um grupo do qual faz parte, fazendo o trajeto de São Paulo ao Alasca a bordo de um Ford Modelo A 1929.
Alguém percorrendo milhares de quilômetros em um carro de quase um século me pareceu uma façanha e tanto. Aceitei a sugestão/desafio do leitor Alcides Castro Maya, 75 anos, engenheiro eletrônico de Porto Alegre, ele mesmo dono de um Modelo A 1929 de um amarelo luminoso. Bastou uma mensagem em uma rede social do Clube do Fordinho para que me colocassem em contato com o casal: o arquiteto André Luiz Falavigna, 60 anos, e a procuradora do Estado de São Paulo aposentada Maria Clara Osuna Diaz Falavigna, 58.
Sem a facilidade de dormir no próprio transporte, como fazem os outros casais no motor home, André e Clara viajam só enquanto há luz do dia e param à noite em hotéis desde a partida, em 5 de abril, saindo do Brasil por Foz do Iguaçu, passando por Argentina, Chile, Peru, Equador e Colômbia onde, em Cartagena, embarcaram o veículo em um contêiner para cruzar o Canal do Panamá e depois seguiram por América Central, Estados Unidos e Canadá para, finalmente, atingir o Alasca. Por isso, tive de esperar se acomodarem em um hotel para falar com eles, num final de noite por aqui, quando iam cruzar a fronteira do México com os EUA e totalizavam 16 mil quilômetros.
Não é a primeira vez que eles se lançam na estrada com o carro que está com os Falavigna há mais de 30 anos, o preferido de André, proprietário de outros automóveis antigos que se dedica a restaurar. Pais de três filhos, casados há 32 anos, eles já arrastaram a família para várias peripécias: ao Deserto do Atacama, no Chile, a Ushuaia, na Argentina, a Machu Picchu, no Peru. A travessia de agora deveria ter ocorrido em 2016 — André e Clara começaram a viagem e chegaram a Assis Brasil, no Acre, quando, na aduana peruana, descobriram que, por um erro burocrático na viagem anterior, em 2012, não havia sido dada a saída do carro daquele país. Com 4 mil quilômetros já rodados, tiveram de fazer meia-volta. Uma espera pontuada pela pandemia e agora concretizada.
E de onde vem a inspiração para essa epopeia? De longe, desde o trio de brasileiros que, em 1928, partiu rumo ao Alasca, também a bordo de dois Ford, mas do Modelo T, para divulgar a ideia de uma estrada que unisse as Américas — levaram quase 10 anos para chegar aos EUA e retornar (há pelo menos dois livros contando a história: Eu não sabia que era tão longe, de Osni Ferrari, e O Brasil através das Três Américas, de Beto Braga), numa jornada que incluiu de ataques de animais selvagens a encontro com o pioneiro da indústria automobilística Henry Ford. Inspiram-se também em argentinos que usam seus carros de coleção para essa rota.
Nem de longe André e Clara enfrentaram desafios como os dos pioneiros, mas cansou aguardar os 13 dias necessários para vencer a burocracia, em Cartagena, para embarcar o veículo, vencer os bloqueios nas estradas do Peru, livrar-se de uma invasão de insetos ou enfrentar o calor na América Central — o conversível de cor grená é lindo, mas não tem ar-condicionado e eles se contentam em abrir o para-brisas que funciona como uma basculante.
Param de três a quatro vezes por dia, para refeições, abastecer e ir ao banheiro. Dependendo da cidade, hospedam-se um ou dois dias para conhecer, conforme o interesse e a disposição. Na Nicarágua, por exemplo, fizeram um itinerário especial só para visitar um vulcão.
E o Fordinho é confortável para viajar, pergunto?
Aí depende do conceito de conforto. André explica que, no banco da frente, é como se estivesse sentado em um sofá, e pula um pouco. O ruído às vezes é alto, por conta da carroceria. Por tratar-se de um conversível de quatro portas, a vedação das janelas não é total — uns 95%, diz André. Mas, importante, ele é todo original. E, na bagagem, além de roupas e objetos de uso pessoal, levam peças fundamentais para substituição, as mais propensas a problemas, além de um galão com 10 litros de gasolina. André projetou uma troca completa de pneus e encomendou a entrega para a casa de um amigo, em Los Angeles.
Amigos, aliás, não faltam no meio do caminho. Muitos dos que os seguem nas redes sociais convidam para uma visita, um café, um pernoite. Já aceitaram ofertas na Argentina, na Colômbia e no Panamá. A indefectível buzina do Fordinho, original, chama atenção por onde passa. Curiosos pedem para fotografar, filmar e olhar o automóvel de perto.
Haviam planejado cruzar a fronteira do Canadá com o Alasca no início de julho e ir até Ancorage, a principal cidade do Estado americano, mas mudaram de planos. No dia 20 último, alcançaram o objetivo por um outro ponto e foram até Fairbanks, a segunda maior cidade, e dali seguiriam até o Círculo Polar Ártico para depois retornar a Ancorage.
— Nem acredito ainda — exclamou Clara, ao me mandar foto deles e do Fordinho no primeiro ponto do destino.
No caminho, deixaram uma placa na Sign Post Forest, coleção existente desde 1942 ao longo da Alaska Highway. Nela, está escrito: Clube do Fordinho, From São Paulo-Brazil to Alaska, 2023. Os mais de mil associados do clube — que ajudou com uma pequena parcela das despesas, além de fazer a publicação dos textos, fotos e vídeos da viagem — certamente se sentirão representados.
Depois, é só iniciar a viagem de volta.
Fordinho casamenteiro
Há mais de 30 anos na família, o Fordinho antes era usado como táxi em Santo Antônio de Posse, terra do avô e da mãe de André, no interior de SP. Foi com ele que Clara chegou à igreja para casar, em 1991. Ele também conduziu a filha de Clara e André, em 2022, à cerimônia de seu casamento.
Como é o carro
- Produzido pela fábrica de Henry Ford em Detroit (EUA), o Modelo A sucedeu o Modelo T. Lançado em dezembro de 1927, teve quase 5 milhões de automóveis fabricados até o início de 1932, quando se encerrou a produção.
- Motor: 40 HP (para fins de comparação, um Ford Ka tem 85 HP)
- Consumo: varia de 5 a 10 quilometros por litro, conforme a estrada, a altitude, a carga...
- Tanque de gasolina: 35 litros
- Velocidade máxima: pode ultrapassar os 80 km/h, na descida e com vento a favor.
Para seguir: @clubedofordinhobrasil