Talvez tenha sido um pressentimento o que Tamar Peretti teve naquele final de 2019: tirou a poeira de uma bicicleta comprada três anos antes e começou a andar pelas redondezas de sua cidade, Guaporé, na Serra. É que quando chegou a malfadada pandemia, em março de 2020, ele estava com um pouco mais de preparo e encontrou no cicloturismo não apenas uma forma de se manter saudável, mas também de obter alguma renda e pensar novos projetos, já que os eventos que se dedicava a organizar não podiam ocorrer. Editor de uma revista regional, foi pedalando que ele passou a fotografar igrejas, capelas e capitéis de locais próximos e produzir catálogos com as imagens.
Entre suas idas e vindas, diante de tantas incertezas, um livro acertou-o em cheio. Ao devorar as mais de 400 páginas de Fé Latina — Uma volta de bicicleta pela América Latina, de Beto Ambrosio, Tamar levou uma fração de segundo para decidir: queria percorrer uma parte do trajeto cumprido pelo ciclista, que viajou de São Paulo ao México, passando por 17 países entre 2012 e 2015. O objetivo principal era conhecer Los Caracoles, uma sinuosa estrada que corta a Cordilheira dos Andes, no Chile, e cuja imagem ele conheceu pela primeira vez aos cinco anos de idade e, agora, reencontrou retratada pelo ciclista.
— Quando vi que ele tinha ido lá de bicicleta, pensei que podia fazer o mesmo — diz Tamar, que se considera um cicloturista e não um ciclista.
O roteiro que escolheu seria bem menor em extensão e tempo, mas nem por isso menos difícil. Tamar o executou sozinho ao longo de 90 dias, cruzando quatro países — Brasil, Uruguai, Argentina e Chile —, rodando 7 mil quilômetros. Aos 48 anos, casado, pai de Antonio, um menino de cinco anos, ele deixou Guaporé no dia 1º de fevereiro e retornou no dia 1º de maio último.
A expectativa de conhecer a Cordilheira dos Andes era tamanha que ele tinha certeza de chorar ao chegar lá. Mas faltavam ainda 50 quilômetros para Mendoza, na Argentina, na manhã em que saiu de sua barraca e a enxergou de longe pela primeira vez. Caiu no choro ali mesmo. Em Los Caracoles, então, nem se fala: filmava, parava, chorava...
Pedalar de oito a 10 horas por dia, completar pelo menos 100 quilômetros diários (seu recorde foram 200), apesar das exigências físicas, ele não sentiu tanto. O que pesou mais foram os momentos de solidão, ainda que houvesse internet quase todo o tempo e não perdesse a comunicação com a família e os amigos.
Para cada um dos dias percorridos, arrumou um "padrinho", alguém que ajudou a financiar alimentação e alojamento (em todo o percurso, calcula ter dormido apenas 15 dias acampado). No total, foram 90 padrinhos e sete patrocinadores que acompanharam a aventura em um grupo de WhatsApp, além de outras redes sociais.
— O mais enriquecedor na viagem foi ter conhecido tantos lugares, mas, principalmente, ter me permitido enfrentar o novo, com coragem, calma e fé. Às vezes, estava inseguro e fui acolhido na casa das pessoas. Na altitude, com problemas para respirar e continuar, inicialmente entrei em pânico, mas em minutos me acalmei. A palavra-chave da minha viagem é coragem — diz.
A aventura de agora não chegou a ser uma "extravagância". Tamar já foi piloto em competições de Endurance e completou quatro vezes as 12 Horas de Tarumã, tradicional competição automobilística, faz caminhadas seguindo o trajeto de ferrovias de sua região e já saltou de paraquedas — esta façanha rendeu, além da adrenalina, uma perna quebrada, sete pinos e uma placa para consertá-la.
O modo de fazer de Tamar
O que carregou
- Cerca de 20 quilos de bagagem, incluindo barraca, saco de dormir, três conjuntos de roupas de ciclista e roupas "normais" para frequentar pontos turísticos e hotéis
- Dois celulares e carregadores
- Alimentação de "segurança", como barras de cereal, enlatados, doces, frutas e água
A bicicleta
- Ao saber de seu projeto, uma loja de Guaporé que participou como patrocinadora e um fabricante produziram uma bicicleta adequada às medidas dele, que tem 1m90cm de altura, com "câmbio moderno, suspensão a ar e um bom freio".
O que faltou e o que sobrou
- Sentiu falta da câmera fotográfica profissional, abolida por pesar mais de 1,5 quilo. Ele queria ter tido mais recursos para fotografar o céu noturno no Deserto do Atacama, onde dormiu em sua barraca, "no meio do nada".
- No início da viagem, dispensou roupas que notou que seriam desnecessárias e pesavam demais.
As dificuldades
- Em dois momentos, teve de pegar carona. Num deles, a 4.700 metros de altitude, no Paso de Jama (Chile), pediu ajuda após (tentar) dormir à beira da estrada enfrentando 6°C negativos.
- Da segunda vez, entre Copiapó e Antofagasta, no Chile, um trajeto onde em pelo menos 300 quilômetros não há restaurantes, postos de gasolina ou moradores, após o segundo caminhoneiro parar e dizer a ele que não era aconselhável pedalar sozinho por ali, aceitou a carona de um motorista chileno.
- Não enfrentou problemas em fronteiras e aduanas e, da bicicleta, só alguns raios quebraram já no retorno ao Brasil, em Santo Ângelo, quando foi resgatado por uma pessoa que o seguia nas redes sociais e ofereceu a casa para que pernoitasse.
As lições e o futuro
- Tamar diz ter reafirmado a máxima de que "tudo é possível, se tiver organização e quiser mesmo". Daqui a um ano, além de novos desafios, pensa em publicar um livro sobre a viagem com um objetivo: não só incentivar a aventuras, mas a fazer com que as pessoas "saiam do sofá, acreditem em si mesmas e busquem realizar seus sonhos, independente de quais sejam".
Nas redes sociais: @pedalotur no Facebook e no Instagram