Não é que se precise de motivos para falar sobre Portugal. O país é lindo, rico em história, cultura, paisagens, com bons vinhos, gastronomia apetitosa, pessoas gentis... Para os turistas brasileiros, há a facilidade do idioma (ok, às vezes nem sempre parece falarmos a mesma língua). Os gaúchos, desde abril, ainda retomaram a possibilidade de um voo direto para a capital portuguesa, com três saídas por semana (às terças, quintas e sábados) pela companhia aérea TAP.
Mas o que provoca este texto é uma efeméride: os 100 anos do escritor português José Saramago, nascido a 16 de novembro de 1922 na aldeia de Azinhaga (veja no detalhe eventos no RS para lembrar o centenário). Vencedor do Nobel de Literatura em 1998, ele ganhou o mundo com seus mais de 40 livros, entre eles Viagem a Portugal, uma imersão de quase um ano à própria terra, lançado em 1981 e relançado em novembro do ano passado, na largada das comemorações do centenário.
Nesse mesmo dia, com a presença de Pilar del Río, viúva do escritor falecido em 2010, a Rádio e Televisão de Portugal (RTP) anunciou uma série de TV para refazer os caminhos de Saramago em seu livro, uma sequência de seis programas apresentada pelo brasileiro Fábio Porchat – a estreia é prevista para setembro em Portugal, e o ator e comediante disse acreditar que essa nova versão da viagem pode instigar as pessoas a percorrerem o “caminho de Saramago”.
Antes de recomendar a leitura de Viagem a Portugal, vai aqui a advertência do próprio escritor na apresentação do livro:
“O viajante viajou no seu país. Isso significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando (...) Tome o leitor as páginas seguintes como desafio e convite. Viaje segundo um seu projeto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cômodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desascostumadas para o mundo”.
Vale para toda e qualquer viagem, não?
Para mim, o que chamou a atenção, além do dito por ele mesmo, é que Saramago produziu uma espécie de “autoajuda” aos viajantes ao longo dos seis capítulos e das quase 500 páginas, de surpresas e arrependimentos, de certezas e decepções. A seguir, uma seleção de trechos:
Os “detalhes” de um lugar
“Hão de perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual com sua beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias (Vilarinho de Samardã e Samardã), só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco.”
As pessoas do caminho
“Pena leva o viajante de não ter puxado uma cadeira para junto da mesa a que o sacristão trabalhava nas suas eclesiais escriturações e ficar ali na boa conversa, a saber de vidas e de gostos musicais, perde-se muito não falando com as pessoas.”
A necessária curiosidade
“O silêncio, neste lugar, é total. E não se vê vivalma. De duas uma: ou o mundo vai acabar, ou vai começar o mundo. Ninguém é viajante se não for curioso. Aquele portão entreaberto, o silêncio, o lugar ermo, se não aproveitasse seria tolo ou mal encaminhado.”
Palavra versus imagem
“O viajante tem o dever de medir as palavras. Não lhe fica bem desmandar-se em adjetivos, que são a peste do estilo, muito mais quando o substantivo se quer, como neste caso. Mas (...) a pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de escultura que as palavras são desgraçadamente de menos. Aqui pedem-se olhos, registros fotográficos que acompanhem o jogo da luz, a câmera do cinema, e também o tato, os dedos sobre esses relevos para ensinar o que aos olhos falta.”
Paisagem e sentimentos
“Este canto da terra, o grande lago sereno, liso como um espelho polido, os montes altos que contêm a enorme massa de água dão ao viajante uma impressão de paz como até agora não experimentara. E quando, depois de subir a estrada do outro lado e terminar a jornada, torna a olhar o mundo, acha que tem direito a isto, apenas porque é um ser humano, nada mais.”
Expectativas e decepções
“Em vez do lugar agreste, penhascoso, uma espécie de capricho natural, arredado da frequentação das gentes, sai ao viajante um parque de piqueniques estivais, onde ainda há restos de folguedos e sacos de plástico. Já que sabe como estas coisas são: o viajante viaja e quer que tudo seja só para ele, fica ofendido se alguém se antecipou nas vistas e nos prazeres.”
O não visto
“Eis a boa filosofia: tudo é viagem. É viagem o que está à vista e o que se esconde, é viagem o que se toca e o que se adivinha, é viagem o estrondo das águas caindo e esta subtil dormência que envolve os montes. (...) “Talvez um dia volte, talvez não volte nunca, talvez até evite voltar, apenas porque há experiências que não se repetem.”
O percurso
“Todo o viajante tem o direito de inventar as suas próprias geografias. Se o não fizer, considere-se mero aprendiz de viagens, ainda muito preso à letra da lição e ao ponteiro do professor.”
Sobre o fim de uma viagem
“A viagem acabou (…) Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (...) O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. (...) É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”
Celebração no RS
Parte de uma série de eventos no mundo, a comemoração José Saramago 100 Anos: O Inventor de Bússolas terá participação de três universidades gaúchas: UFSM (20/6), Furg (21/6) e PUCRS (22 a 24/6), com atividades gratuitas e presenciais que necessitam de inscrição prévia. Na PUCRS, a conferência de abertura, no dia 22, será com o professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, comissário para o centenário do escritor. O encerramento, dia 24, também na PUCRS, terá palestra da professora Ana Paula Arnaut, de de Coimbra. O saguão da Biblioteca Central da universidade receberá a mostra de fotos Voltar aos Passos que Foram Dados. Os eventos têm a chancela da Fundação José Saramago (josesaramago.org) e integram seu calendário oficial.
Informações pelo e-mail saramago100pucrs@gmail.com e no Instagram @oinventordebussolas.