Não foi preciso o mundo virar de ponta-cabeça para o gaúcho Alessandro De Franceschi, 36 anos, e a capixaba Maria Eduarda Cardoso, 28, descobrirem que a vida é curta e que o quintal de cada um pode ser bem maior.
Eles se colocaram na estrada, com a casa nas costas, ou melhor dizendo, com um motor home em que compartilham sete metros quadrados, em 29 de janeiro de 2020, portanto pouco mais de um mês antes da pandemia do coronavírus. Estavam preparados, após um ano de intenso planejamento e economias, para passar cerca de 18 meses trilhando o trajeto que os levaria de Ushuaia, o ponto mais austral da América, ao Alasca.
Quando já haviam percorrido o litoral uruguaio e o sul do Chile, viram-se em El Calafate, na Argentina, com as fronteiras fechadas e os planos em suspenso. Haviam chegado ali no verão, enfrentaram outono e o começo do inverno esperando que as coisas melhorassem. Enquanto aguardavam, fizeram amizades, foram acolhidos no pátio de um hostel, patinaram no Lago Argentino gelado. As restrições impuseram que eles sequer pudessem conhecer o principal patrimônio natural da região, o Perito Moreno.
Cinco meses depois, rumaram a Bariloche, convidados por um admirador que seguia a plataforma multimídia que alimentam em sua viagem, o GetOutside, para encaminhar a documentação para o retorno ao Brasil. Foram mais três meses (re) fazendo planos e aproveitando o possível, como esquiar na pista quase sempre deserta do Cerro Catedral, até Ale e Duda voltarem e redirecionarem seus passos por estradas brasileiras. É que eles já tinham tornado possível e rentável seu plano de viver viajando e não voltariam atrás. Deram passadinha rápida para rever a família e a partir daí os pontos mais paradisíacos do Brasil foram sendo pintados no mapa pelo casal que traçou o isolamento com a casa nas costas.
Mesmo pequena, tem tudo o que precisam e até cozinhar virou não só prazer, mas produto: o interesse de quem os acompanha no Instagram e no YouTube levou-os a produzir um livro de receitas que inclui a comida vegana de Duda e pratos saudáveis do Ale.
O casal soma 30 mil quilômetros percorridos, em quatro países e 16 Estados brasileiros. Vacinados, acreditam que poderão retomar o plano inicial em janeiro. Não era e não é tempo de desistir.
O passo a passo para viver na estrada
O PLANEJAMENTO
- Ale e Duda economizaram o máximo pelo período de um ano: foram morar juntos para reduzir um dos aluguéis, venderam o carro, assim como muitos dos móveis e utensílios e até roupas que não precisariam, cortaram atividades de lazer e aplicaram o dinheiro, com a ajuda de uma assessoria financeira
- Gastam, em média R$ 5 mil por mês na estrada
- Ganham menos do que ganhavam como advogados, mas gastam imensamente menos na estrada do que gastavam em São Paulo
A CASA
- Antes de comprar o motor home, alugaram um e fizeram duas viagens-teste
- Pagaram R$ 160 mil pelo motor home, com banheiro com água quente e fria e cozinha completa. Carregam na bagagem caiaque inflável, esqui, barraca, saco de dormir, mesa e cadeiras
OS PRODUTOS
- Após realizarem cursos, oje vendem fotos impressas em papel algodão para emoldurar e adesivos
- Dão cursos online sobre como transformar a aventura em negócio e criaram um e-book com dicas
ALGUMAS DICAS
- O planejamento nunca vai estar 100%, mas em algum momento é preciso partir
- É preciso adaptar-se à vida na estrada, pensando no consumo de energia e de água. Para organizar roteiros, usam o aplicativo iOverlander
- Jogo de cintura para o que vai dar errado é recomendável
- Saber apreciar o caminho e ir com calma
ONDE ACOMPANHAR
- O canal no YouTube do GetOutside tem 102 mil inscritos e o Instagram, mais de 110 mil. Veja em getoutside.com.br e @getoutsidebr
Mas e as questões financeiras?
Daiane Mohr, 33 anos, planejadora financeira e sócia da Warren, empresa que assessora os investimentos de Ale e Duda e hoje os patrocina, dá sugestões de como realizar sonhos como este. Cerca de 30% dos 120 clientes da carteira de Daiane, segundo ela, têm as viagens entre os objetivos mais comuns.
— Planejar é a parte mais importante. Guardar dinheiro pensando a longo prazo não é fácil para ninguém. O desafio é investir melhor e guardar recursos desde cedo — sugere Daiane.
RECOMENDAÇÕES
- Para qualquer meta de independência financeira, inclusive viagens, o cálculo é parecido: reservar 50% dos ganhos para custos fixos, 30% para variáveis e 20% para investimentos (o que você vai economizar para fazer a viagem). O que faz diferença para chegar aos objetivos é o tempo, e quanto antes tiver o plano de voo, melhor.
- É preciso pensar no valor que você quer/pode gastar e em como se manterá viajando. Calcule o valor mensal das despesas e o que terá de fazer para obter essa reserva. O destino e o objetivo final são muito importantes. Considere o roteiro e como vai percorrê-lo para estimar gastos com deslocamento, hospedagem e alimentação. A estimativa depende do tipo de viagem: está disposto a abrir mão de hotelaria? Vai cozinhar ou desfrutar da gastronomia local?
- Ao planejar, converse com quem já viveu experiências semelhantes, com pessoas do mercado de viagens e com planejadores financeiros.
- Recursos para projetos como o de Ale e Duda sofrem alterações dolarizadas, e quem viaja tem de se proteger desses efeitos. É bom lembrar que, em 2020, o real sofreu desvalorização de 22% ante o dólar. Então, a reserva tem de ser feita em dólar.
- Impossível fazer um roteiro desse gênero sem ter seguro de viagem internacional adequado.
- No roteiro, não corra riscos com dinheiro investido, porque poderá ter de dispor dele. A sugestão é levar parte dos recursos em dinheiro vivo e deixar o resto investido em dólar, para proteger o dinheiro, e ir sacando à medida da necessidade (evite levar grandes quantias, por conta do risco de assaltos, assim como o uso de cartão de crédito, para fugir do IOF).
Detalhe ZH
Tendência que experimentava crescimento, ainda que lento, desde 2015, o “caravanismo” (acampar usando um veículo) teve alta entre 27% e 35% nos últimos dois anos.
A estimativa é de Marcus Pinto Matheus, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Trailers, Reboques e Engates (Anfatre), entidade com 45 associados no país. Empresário do ramo há 31 anos, proprietário da Itu Trailers, que também fabrica e importa motor homes, ele confirma que a pandemia pode ser considerada o gatilho para o aumento, já que as pessoas passaram a querer ficar perto da família, mais isolados, mas com mobilidade.
Já vinha mudando, também, o tipo de usuário: nos anos 1970/80, era considerado um tipo de viagem mais barata e para aposentados; agora, a faixa de quem compra um veículo do gênero vai dos 32 aos 55 anos e, mais do que nunca, representa estilo de vida.