A memória é falha e o Google, neste caso, não ajuda. Paciência. Já contei tantas vezes, que talvez tenha também escrito: filha de professora, ainda que ela estivesse licenciada quando nasci, ao entrar na escola eu já estava alfabetizada. O que me deu vantagens iniciais em relação aos colegas também me trouxe dissabores: chorava, diante do caderno e do quadro verde, por ter de fazer exercícios que julgava primários demais para o meu conhecimento. Por conta disso, pulei o pré e, em alguns dias, estava no primeiro ano, o que amenizou meu desgosto inicial, mas não chegou a ser suficiente: passei a invejar meus colegas e suas exclamações de satisfação diante das descobertas ao juntarem as letrinhas e formarem as primeiras palavras num tempo em que a cartilha rezava “Olavo ajuda papai” e “Élida ajuda mamãe”.
Enxergo o prazer da descoberta infantil, a leitura como marco para a entrada na vida de verdade, como libertação
Então, durante um tempo, fantasiava: fingia não saber ler para experimentar o mesmo prazer que enxergava neles. Meu devaneio infantil não levava a lugar nenhum e em pouco tempo estávamos nivelados, meus companheiros e eu, mas lembro disso sempre que leio/ouço/vejo histórias de superação como as contadas em depoimentos reais ao final do primeiro episódio da série Segunda Chamada, sobre educação de jovens e adultos, ou a de uma senhora que não me sai da cabeça depois de ler seu feito numa reportagem, anos atrás – Tetê Brandolim, do interior de São Paulo, alfabetizou-se depois dos 80 anos e, com a premência do tempo e a criatividade despertada pelas letras, virou artista plástica com obras expostas inclusive no Exterior.
– Nunca abri mão do meu sonho de ser alfabetizada. A arte saiu do coração, só estava adormecida. Eu mudei e nasci para uma nova vida – dizia ela na reportagem.
Sem contar outras tantas trajetórias de crianças, jovens e adultos narradas nesta semana em que os professores costumam ser lembrados. Eu vejo em todas elas não só as possibilidades que a alfabetização traz, ainda que tardia. Todos os relatos contêm em si o desejo de “iniciar” a vida aos 50, 60, 70, 80, de concluir cursos e começar uma carreira, de recuperar anos de sacrifícios e de falta de oportunidades.
Como se isso fosse pouco, o que enxergo também é aquele prazer da descoberta infantil, a leitura como marco para a entrada na vida de verdade, como libertação, como grito de independência.
Nunca é tarde, mas o sonho a perseguir é que seja sempre cedo para todos.
Ninguém deveria ser privado desse prazer.