Não, eu não fui com a escola. Talvez porque o sítio de São Miguel Arcanjo só tenha entrado para a lista do Patrimônio Mundial em 1983, e aí eu já estava quase na faculdade. Ou, depois, porque os 500 quilômetros que separam Porto Alegre de São Miguel das Missões parecessem muitos.
Ou as prioridades fossem outras. Certo é que os anos se passaram e eu comecei a ficar com vergonha de dizer que, não, nunca tinha ido às Missões, o nome popular do sítio arqueológico. Mesmo depois de percorrer inúmeros países e não tendo nenhuma dúvida sobre a riqueza e a importância daquele monumento bem aqui no Estado, eu nunca tinha ido.
Por isso, o meu encontro com São Miguel, em novembro passado, teve tanto significado para mim. Cheguei de manhãzinha, me instalei num hotel próximo e fui andando até as ruínas sem ter muita ideia nem da distância, nem da proporção que a igreja, a principal construção, e seu entorno teriam. Confesso que, da estrada, ela parecia uma visão: o contraste do céu azul com a pedra meio vermelha, meio alaranjada, meio ocre, reforçava o efeito.
Fui a primeira turista do dia a entrar, o parque inteiro só para mim, o silêncio de séculos de história escancarados à minha frente. Só as corujas buraqueiras estragaram meu sossego (ou teria sido eu a estragar o delas?). Dali a pouco, também chegaram as famílias de descendentes de guaranis, crianças conversando e cantando, para vender artesanato junto ao museu do sítio. Mas toda a área da igreja, concluída em 1745 e atribuída ao arquiteto jesuíta Gian Battista Primoli, era só minha. E aproveitei cada segundo, antes da entrada das dezenas de visitantes que eu veria ao longo do dia, para me desculpar de novo por ter levado tanto tempo para estar ali.
E por isso também, passados quase três meses, pensei que era mais do que hora de escrever sobre essa experiência depois de uma boa notícia: a de que uma verba razoável permitirá melhorias no entorno do sítio e que a Tava, um espaço sagrado para o povo guarani, será considerado patrimônio cultural do Mercosul. Que bom, que mais gente se sinta atraída, como eu, a conhecer essa parte tão bonita, e tão triste, da nossa história.
Maquete mostra como era a redução
Se, como eu, você só tiver das reduções jesuíticas as informações recebidas nos primeiros anos de escola, talvez a dica seja começar a visita ao sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões, no noroeste gaúcho, por um lugar bem específico da igreja: bem ao fundo, à esquerda, em uma sala fechada, há uma maquete que reproduz a redução tal como seria no século 18. Cada redução era projetada como uma “cidade”, e a maquete remonta tudo na época de seu auge: a igreja erigida em arenito e recoberta com telha de barro, o colégio, as oficinas, a casa onde viviam as viúvas e os órfãos, o tambo, o cemitério, o pomar...
O cotidiano da sociedade descrita como um “triunfo da humanidade” pelo filósofo Voltaire, idealizada por missionários jesuítas e índios catequizados, consegue ser imaginada a partir da maquete, mas principalmente ao se circular pelo interior da igreja que tem preservada a fachada, o campanário, a sacristia e as paredes, e pelas ruínas de seu entorno.
Eram 30 comunidades como essa – no Brasil, no Paraguai e na Argentina –, de grupos que produziam cultura e arte, que plantavam, colhiam, eram sustentáveis e chegaram a ter uma população de quase 150 mil pessoas. Após décadas de esplendor, entraram em decadência com a expulsão dos jesuítas, no final do século 18, com os índios feitos praticamente escravos em fazendas e estâncias da região. Restaram essas ruínas, que podemos visitar para não esquecer a história.
Museu das Missões
Ainda que integrada à paisagem, chama atenção a construção moderna dentro da área do sítio: o Museu das Missões, construído em 1940 a partir de projeto do arquiteto Lúcio Costa, o mesmo de Brasília. Ele abriga quase uma centena de imagens de arte sacra missioneira, relativamente bem conservadas. Em 2016, o pavilhão sofreu danos seriíssimos causados por um tornado, permaneceu fechado por mais de um ano e, recuperado, ainda tem uma área de acesso restrito. A amostra que ali está dá uma ideia do que foi aquela comunidade que produziu esculturas belíssimas, a maioria em madeira policromada e arenito.
Fonte missioneira
Fora do sítio arqueológico, o visitante pode conhecer a fonte missioneira. A área pertence à prefeitura de São Miguel, mas a manutenção desse espaço que revela como era o uso da água nas reduções jesuíticas é de responsabilidade do Iphan. Só há uma fonte preservada (a da foto), mas como é sabido que havia sete nascentes à volta da cidade, os pesquisadores supõem que havia outros pontos como este, com represas, piscinas, fontes e chafarizes.
A fonte é em arenito, como as pedras utilizadas nas reduções, e tem anjos e outras imagens entalhadas. Para uma tarde quente como a que escolhi para visitá-la, o frescor que emanava da água corrente a transformou num pequeno oásis.
Manancial Missioneiro
Minha ida às Missões teria sido incompleta se não tivesse visitado o Manancial Missioneiro, conhecido o Valter Braga e participado de um “ritual de purificação” à base de fogo e erva-mate. Valter é daquelas pessoas que, se não existissem, precisariam ser inventadas. Sua abnegação e autodidatismo é que mantêm esse espaço desde 1989, organizado de um jeito meio caótico, com peças originais, reproduções, devoluções arqueológicas e peças que contam um pouco da história mais recente da região. Se ele é descendente de guaranis? Sim, como quase todos por ali. A avó era guarani.
E é essa memória viva que ele trata de manter, aos 53 anos. “Saberes”, “vivências” e “patrimônio imaterial” serão palavras ouvidas à exaustão na visita guiada. Ele ficaria ali explicando, sem hora para parar, como funcionava o “tatarandê”, um altar de fogo, o sistema usado pelos índios e jesuítas para comunicação entre as reduções – ele mesmo reconstruiu a peça, conta que eram usados 10 códigos diferentes, mas só quatro são conhecidos. Ficaria, se eu não tivesse hora para sair e se ele não tivesse também um compromisso importante e inadiável: é um dos responsáveis pelo espetáculo Som e Luz, no sítio arqueológico. Fica na Rua Arnoldo Daher Boays, 514.
Espetáculo Som e Luz
Talvez a minha pouca expectativa tenha sido responsável pela boa surpresa. E talvez também tenham contribuído a noite perfeita, de céu estrelado e brisa fresca, e aquela multidão animada que se espalhava pela arquibancada de concreto ou pela grama (convém levar uma almofadinha, canga, toalha ou até uma cadeirinha de praia). Certo é que eu curti muito aqueles 48 minutos de espetáculo, como diz o título, de som e luz.
O som não é qualquer som. São as vozes de grandes nomes do teatro/cinema/tv brasileiros (Fernanda Montenegro, Maria Fernanda, Lima Duarte, Paulo Gracindo, Juca de Oliveira, Rolando Boldrin e Armando Bógus), num espetáculo que tem roteiro e texto de Henrique Grazziotin Gazzana. Elas, as vozes, se revezam representando a igreja (a que está à frente, imponente e iluminada) e a terra. O som de trovões, a claridade das tempestades, o rugir dos canhões, os diálogos e gritos vão narrando a experiência vivida naquele mesmo lugar, capaz de fazer a gente sentir-se parte daquilo tudo.
E é bonito também ver as pessoas indo embora, ao fim de tudo, satisfeitas, caminhando sem medo à volta do sítio, num local que já foi palco da mais perfeita harmonia e que também viveu os horrores de um massacre.
O espetáculo pode ser ouvido em três idiomas
- Em português: todos os dias (às 21h30min durante o horário de verão e às 20h no resto do ano)
- Em espanhol: terça, quinta e sábado (consultar horário)
- Em inglês: quarta, sexta e domingo (consultar horário)
- Os ingressos não são vendidos antecipadamente, o que para mim pareceu muito estranho. Então, é preciso ir bem antes, entrar na fila e comprar o ticket na entrada. Custa R$ 25 e R$ 10 (para estudantes e pessoas com mais de 50 anos). Será que não poderiam ser vendidos pela internet? Ou comprados mais cedo, como eu queria, por quem visita o sítio durante o dia?
Para visitar o sítio arqueológico
- De terça a domingo, das 9h às 12h e das 14h às 20h. Às segundas, funciona das 13h30min às 18h.
- Custa R$ 14 (adultos) e R$ 7 (crianças com mais de seis anos, estudantes e idosos).
- Um mapa indicativo pode ser suficiente para a visita, já que é tudo bem sinalizado, mas você também pode alugar um audioguia, disponível em seis idiomas, descrevendo curiosidades e fatos históricos, ou contratar um guia.
Como ir
- Eu bem que tentei ir de avião até Santo Ângelo, a partir de Porto Alegre. O voo dura 1h20min e teria mais uma hora de carro até São Miguel das Missões. E a viagem de 500 quilômetros teria praticamente o tempo de uma ida até a praia. Mas o valor da passagem ficou tão absurdamente alto, que desisti.
- Optei por ir de ônibus leito (sete horas de viagem e cerca de R$ 200 por trecho, mais o táxi até meu hotel em São Miguel desde a rodoviária de Santo Ângelo). Foi uma viagem agradável: com wi-fi no ônibus, fui vendo filmes, lendo, ouvindo música, dormindo... Só não pude desfrutar da paisagem porque a viagem era noturna.
- De carro, são pouco mais de seis horas.
Onde ficar
- Anos atrás, tive de reservar um hotel em Santo Ângelo para uma amiga estrangeira que queria visitar as Missões, por conta da precariedade das opções em São Miguel. Por isso agora fiquei tão positivamente surpresa: me hospedei no Tenondé Park Hotel, a menos de um quilômetro das ruínas. Com sua arquitetura, ele tenta reproduzir as antigas construções missioneiras. Localizado numa área verde enorme, tem muitas opções, seja qual for o tipo de viagem: piscina, esportes, trilha ecológica ou uma singela rede na varanda para ler e descansar. Também oferece restaurante, com comida simples e benfeita. O que mais se pode querer?
- Outra opção próxima, com acomodações mais modestas, mas também agradável, é a Pousada das Missões, especializada em receber grupos de estudantes. Funciona como hostel, dá até para preparar a própria comida, tem serviço de day use e o Café do Leitor, aberto ao público e perfeito para um lanche antes de assistir ao Som e Luz, espetáculo que ocorre todas as noites.