Foi coincidência. O escritor Sergio Faraco poderia ter lançado Digno é o cordeiro em qualquer novembro dos últimos 40 anos, mas o fez neste 2024 em que dias depois tomamos conhecimento dos planos mirabolantes para o retorno de um tempo em que não devemos esquecer, exatamente para que não se repita. Estive na sessão de autógrafos do patrono da Feira do Livro no início do mês e agora, num voo entre Porto Alegre e São Paulo, devorei as 117 páginas como se estivesse no tempo em que a Varig oferecia um banquete a bordo da classe econômica, com vinho bom em copos de cristal.
Digno é o cordeiro parece título de um conto do maior contista vivo do Brasil. Mas é um livro de memórias, esperada continuação de Lágrimas na chuva. Os leitores de Faraco se perguntavam — e o questionavam — sobre o que acontecera na volta daquela viagem de pesadelo à falecida União Soviética, nos primeiros anos da ditadura militar brasileira.
Quando o jovem comunista embarcou para conhecer a URSS, a convite do Partido Comunista soviético, com outros brasileiros, ele pouco sabia da repressão política na terra de Lênin, Trótski e Stálin. Lá, acabou se indispondo com o autoritarismo, foi preso e isolado no Hospital do Kremlin, como se estivesse louco. Essa história está detalhada em Lágrimas da Chuva, que pode ser lido antes ou depois de Digno é o cordeiro sem comprometer a compreensão. Conseguiu sair quando achava que tudo estaria perdido, voltou ao Brasil e desembarcou na ditadura militar. Do autoritarismo de esquerda para o de direita, sentiu no corpo e na alma o quão nocivas são as ditaduras.
Em Digno é o cordeiro, Faraco conta o pedaço que coube a ele e a outros brasileiros marcados a ferro e fogo por terem um dia simpatizado com o comunismo. À época ele ainda não era o consagrado escritor do Alegrete, mas um jovem burocrata a serviço da Justiça do Trabalho. Foi preso, isolado, torturado. Ao contrário dos que o regime fez desaparecer por não contarem o que sabiam e o que não sabiam, Faraco sobreviveu não só para relatar, quase seis décadas depois, o que sua memória guarda daquele ano sombrio, mas para escrever contos inigualáveis, lapidados com paciência de escultor de parágrafos.