Os cem dias da enchente que abalou o Rio Grande do Sul se prestam a uma reflexão sobre o conformismo dos gaúchos com a mediocridade. Parece que nos acostumamos às obras inacabadas e às promessas não cumpridas, como se fosse uma espécie de determinismo. A ideia de que “sempre foi assim” ou de que “obra pública sempre atrasa” explica a convivência pacífica com esqueletos urbanos e rurais, estradas de má qualidade, inaugurações de retalhos que rendem discursos e fotografias.
Em setembro, quando a cheia do Taquari arrasou cidades ribeirinhas, prefeitos, empresários e moradores ouviram promessas até hoje não cumpridas. As moradias recém estão começando a sair do papel. Obras de prevenção? Zero. Desassoreamento dos rios? Quase nada.
Com a enchente de maio, tudo piorou. E o que antes era considerado especialidade do setor público se estendeu às empresas privadas — caso das concessionárias de rodovias e da Fraport no Aeroporto Salgado Filho. É preciso reconhecer que o dilúvio foi sem precedentes e que durante todo o mês de maio ficou impossível reconstruir o que a água levou ou danificou. Também é preciso ter em mente que não se faz uma ponte sem projeto, nem se constrói um novo dique sem os estudos necessários.
Feitas essas ressalvas, não é crível que seja necessário tanto tempo para reformar a pista do Aeroporto Salgado Filho, por exemplo. Fechado desde 2 de maio, a previsão de reabertura (parcial) é somente em 21 de outubro. Os estudos demoraram porque era preciso ter certeza do tipo de intervenção necessária para garantir a segurança dos voos. Mas estão prontos desde a metade de julho. A Fraport diz que não tem como fazer mais rápido — e aí a gente lembra de reconstrução do Japão depois do tsunami e fica com a sensação de que a história não está bem contada.
Se o problema é falta de dinheiro, que o governo adiante o pagamento daqueles R$ 170 milhões já reconhecidos pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) como indenização à empresa pelas perdas da pandemia. Se é falta de mão-de-obra especializada, que se busque em São Paulo ou em qualquer lugar em que haja disponibilidade.
Vale o mesmo para as rodovias concedidas. Cem dias depois da enchente que deixou a BR-386 interrompida entre Marques de Souza e Pouso Novo, a estrada ainda carece de reparos e tem trechos de pista única, que atrasam as viagens de/para o Norte em até três horas. Não tem como ser mais rápido ou é a agência reguladora que não cobra? Ou nós, usuários, que somos condescendentes?
Antes da enchente, nos conformamos com o atraso nas obras da Copa de 2014, que ainda não foram concluídas. Aceitamos como natural que a nova ponte do Guaíba tenha sido inaugurada em 2020 pelo então presidente Jair Bolsonaro e que até hoje as alças de acesso não tenham sido concluídas. Acatamos a justificativa de que a prefeitura não consegue remover as famílias que precisam ser realocadas para que as obras andem.
Tratamos com naturalidade as inaugurações de trechos da BR-116 (Guaíba-Pelotas) e a transferência da conclusão para o ano seguinte, que nunca chega. Absorvemos como fatalidade que o governo Michel Temer tenha interrompido a duplicação da BR-290 (Eldorado do Sul-Pantano Grande), que Bolsonaro tenha ignorado os apelos dos líderes gaúchos por uma obra tão essencial e que o governo Lula ainda esteja nos estudos jurídicos para a retomada dos lotes 1 e 2. Justiça se faça, os lotes 3 e 4 estão andando em ritmo adequado.
ALIÁS
A reconstrução do Rio Grande do Sul não pode ser feita com remendos: para que seja efetiva, precisa ser feita com um padrão de qualidade superior, seja na reconstrução dos diques, seja nas novas obras de contenção das cheias que estão sendo pensadas para evitar que a tragédia se repita nos próximos anos.