Lá na roça onde eu morava, a música mais popular ali pelo final dos anos 1970 era Debaixo dos caracóis dos seus cabelos. Na nossa ignorância política, acreditávamos que Roberto Carlos cantava para uma mulher por quem estava apaixonado. Na Rádio Ibirubá, moças e rapazes mandavam cartas pedindo para tocar Debaixo dos caracóis e quem ouvia tinha certeza de se tratar de uma história de amor entre um homem e uma mulher e que aquele/aquela a quem a música era dedicada tinha cabelos cacheados. As moças queriam tanto ter caracóis nos cabelos que se submetiam a uma espécie de tortura chamada de "permanente", e encrespavam os cabelos usando rolinhos de metal e um produto de cheiro insuportável.
Só muitos anos mais tarde, vim a saber que a canção era uma homenagem de Roberto Carlos ao amigo Caetano Veloso. Uma canção do exílio para o baiano criado na praia e que enfrentava o tenebroso inverno londrino. Então, cada verso fez sentido e a música se tornou, ao lado de Detalhes, minha preferida do vasto repertório de Roberto Carlos.
Foi essa a música-tema dos meus sonhos e pesadelos em novembro de 2022, quando recebi a notícia de que teria de fazer quimioterapia e perderia os cabelos, como ocorre com a maioria das mulheres que enfrentam o tratamento contra o câncer. Mesmo não tendo os caracóis de Caetano, preparei-me emocionalmente para o momento em que os fios cairiam e teria de me acostumar com a imagem que tantas vezes me enterneceu nas crianças atendidas pelo Instituto do Câncer Infantil.
Pensei em doar a vasta cabeleira para fazer perucas, mas o comprimento não era suficiente. Pedi ao meu amigo Rodrigo Gonzalez que cortasse bem curtinho, para que quando começassem a cair, o choque não fosse tão grande. Disse para mim mesma e repeti para quem me perguntava se usaria aquela touca gelada que faz os cabelos crescerem de novo: Minha preocupação era continuar viva, porque tenho ganas de viver. E dois filhos para quem sou insubstituível.
Depois de meses usando turbantes coloridos, voltei das férias pronta para doá-los a outras mulheres que precisam. Vivo neste inverno a sensação de renascimento, vendo meus cabelos crescerem em time-lapse. Eles voltaram fortes, com mechas grisalhas que me fazem mudar de Monja Cohen, como meus filhos me chamavam, para Cruela, a malvada do filme 101 Dálmatas. Ainda não sei se vou continuar assim ou se vou pintá-los, mas quem acompanha o Gaúcha Atualidade pela nossa live já percebeu que troquei os lenços e chapéus pela versão "eu sou assim".
Aos homens e mulheres que estão por iniciar um tratamento que resultará na queda dos cabelos, tenho a dizer que não vale a pena perder o sono com um detalhe que mexe com a nossa autoestima, mas é secundário. Importante é viver, acreditar na medicina e confiar nos médicos. Agradeço a todos os amigos, ouvintes e leitores que rezaram por mim, cada um na sua fé. Essa corrente positiva foi importante para a remissão, termo mais adequado do que cura, porque o processo de acompanhamento continua com exames regulares.