Só um robô é incapaz de se emocionar com as cenas de desespero registradas em Manaus, onde pacientes da covid-19 estão morrendo por falta de oxigênio e de leitos de hospital. Os relatos dos médicos são dramáticos, o desespero dos parentes das vítimas ecoa mesmo depois que a TV é desligada, a repetição do filme de terror que eram os enterros nos primeiros meses da pandemia atesta o fracasso do Estado como gestor da saúde pública.
Em que outro momento da história do Brasil se viu um pedido para que 40 — ou mais — bebês prematuros sejam transferidos para outros Estados para não morrerem por falta de oxigênio? As últimas informações são de que a transferência foi suspensa porque se conseguiu oxigênio para mais 48 horas.
Minuto a minuto, o colapso de Manaus é uma lição a ser aprendida por gestores em todo o Brasil, principalmente por aqueles que preferem as fantasias ao conhecimento científico.
O presidente Jair Bolsonaro diz que fez tudo o que podia. O vice-presidente Hamilton Mourão sustenta que o governo federal fez mais do que estava a seu alcance. Será que fez mesmo? O presidente, ao menos, poderia ter dado ordem aos seus apoiadores políticos que não transformassem o debate sobre o fechamento da economia de Manaus, em dezembro, em uma guerra ideológica. Pelo menos, na quinta-feira, o Ministério da Saúde anunciou o envio de suprimentos em seis aviões e mandou a primeira carga de cilindros de oxigênio.
Manaus concentra todos os erros que deveriam ser evitados em matéria de saúde, mas alguns se reproduzem em outras praças. Primeiro, por ter uma rede hospitalar precária, que mal dava conta das demandas ordinárias e que foi a primeira a se desestruturar na pandemia. Segundo, por ter políticos que identificaram na desgraça uma forma de se locupletar comprando equipamentos superfaturados (uma rápida busca no Google permite reunir dezenas de notícias sobre corrupção). Terceiro, por negligenciar as medidas de proteção — e aqui entra a falta de educação da população, a incapacidade das autoridades, a ganância e a orientação equivocada de pretensos especialistas a apregoar que o Amazonas já havia atingido a tal “imunidade de rebanho”. Por fim, a falta de gestão de suprimentos. Mesmo com o aviso da White Martins de que não conseguiria suprir a demanda de oxigênio, os governos municipal, estadual e federal demoraram para agir.
A tentativa de frear as aglomerações no final do ano foi repudiada e medidas restritivas acabaram revogadas. A vida seguiu seu curso como se não houvesse amanhã — e não haverá amanhã para centenas de amazonenses que ficaram sem vaga nos hospitais ou sem oxigênio, mesmo depois de ter conseguido um leito.
A saída emergencial encontrada, de transferir pacientes para outras capitais, esbarra em dois problemas: a distância (mínimo três horas de avião) e a capacidade limitada de atendimento, já que são poucos os Estados que podem se dizer em situação confortável. Na maioria das capitais, a ocupação das UTIs passa de 80% e a demanda segue crescente na maioria. Algumas, como o Rio de Janeiro, já bateram no teto.
Na quinta-feira, em transmissão pela internet, Bolsonaro atribuiu o colapso de Manaus ao clima quente e úmido, propício às infecções respiratórias, à localização geográfica, longe dos grandes centros que fornecem insumos hospitalares, e à falta do chamado tratamento precoce (hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, zinco e vitamina D). Falso.
Médicos que trabalham nas UTIs informam que muitos pacientes fazem o suposto tratamento precoce e, mesmo assim, evoluem para o estado crítico. Um depoimento em particular ganhou destaque nesta sexta-feira, o do Anfremon Neto, coordenador da UTI do Hospital Getúlio Vargas, de Manaus:
— A última coisa dita foi que o que está acontecendo aqui em Manaus é porque a gente não está fazendo tratamento precoce. Sacanagem com a gente, profissional da área de saúde, que estamos ali todos os dias. Vejo pelo menos 50 doentes, e eu sei, todos eles fizeram tratamento precoce. Fizeram o uso de azitromicina, ivermectina, alguns fizeram Annita (um vermífugo), e vi até os que fizeram com hidroxicloroquina ainda. Tudo o que foi dito alguns pacientes fizeram em casa mesmo sem terem sintomas.
Aliás
Em meio ao caos, um fato positivo precisa ser registrado: a mobilização de artistas e influenciadores digitais para arrecadar dinheiro e comprar oxigênio e outros suprimentos e mandar para Manaus.