Ao fim da tarde desta quinta-feira (5), vendo diminuírem as chances de vitória, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, protagonizou, dentro da Casa Branca, cenas que entrarão para a história universal da infâmia. Aos gritos de que estava sendo roubado, insistiu na teoria conspiratória de que a eleição foi fraudada, sem apresentar uma única prova. Diante do desrespeito à democracia e aos eleitores que votaram pelo correio e, naturalmente, querem ver seus votos computados, algumas das principais emissoras de TV dos EUA cortaram a transmissão do pronunciamento. Os âncoras explicaram que estavam interrompendo a transmissão porque o presidente mentia.
Por ser inconsistente, a narrativa da fraude pode colar entre os fanáticos que vivem na bolha trumpista, mas não se sustenta em uma democracia de instituições sólidas. Os juízes a quem Trump recorreu para suspender a contagem não caíram na esparrela. A apuração prosseguiu, lenta como era no Brasil dos anos 1980, antes da urna eletrônica.
Na quarta-feira (4), o presidente Jair Bolsonaro, que despreza a urna eletrônica, expressou sua torcida por Trump usando o dito popular “a esperança é a última que morre”. Àquela altura, começara a se desenhar na apuração uma virada que parecia impossível quando Trump ganhou a Flórida e se autodeclarou reeleito, sem considerar o risco de cantar vitória antes da hora em uma eleição que se anunciava apertada.
Quando os números começaram a indicar que era real a possibilidade de Joe Biden virar o jogo, Trump resolveu virar a mesa. Como se estivesse no comando do reality show que o tornou popular, passou a comandar o espetáculo como se tivesse o poder para escolher os votos que merecem ser contados ou de dizer “vocês estão demitidos” aos escrutinadores. Nos Estados em que o resultado lhe favorecia, não fez objeção aos votos pelo correio. Onde os números eram melhores para o adversário, ordenou (sem ser ouvido no seu delírio) para que parassem a contagem.
Na arrogância que marcou seus quatro anos na presidência, Trump esqueceu que ele mesmo recomendou aos eleitores que não votassem pelo correio. Agora, considera indícios de fraude o fato de, em alguns Estados, a maioria dos votos encaminhados pelo Correio ser de Biden.
Ao melhor estilo dos coronéis brasileiros, Trump quer que não se contem os votos do que no passado se chamava a “zona da mata” do adversário. Ante a perspectiva da demissão, palavra que pronunciava com prazer em seu programa de TV, o presidente da maior potência do Ocidente dá sinais inequívocos de desequilíbrio emocional.
Brasil já viu esse filme
O Brasil já tinha visto filme semelhante em 2014. O perdedor, Aécio Neves (PSDB), disseminou a tese da fraude, inconformado porque começou na frente e perdeu para Dilma Rousseff (PT) quando entraram os votos do Nordeste. A reclamação caiu no vazio, porque a investigação da Justiça Eleitoral provou que Aécio perdeu porque teve menos votos.
Quatro anos depois, Bolsonaro, hoje um dos mais fiéis discípulos de Trump, lançou suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação, durante a campanha, e disse que não aceitaria outro resultado que não fosse a vitória. Bolsonaro venceu porque teve mais votos, mas não conseguiu desapegar da teoria conspiratória. Em março, numa viagem aos Estados Unidos, depois de se encontrar com Trump, deu entrevista dizendo que em breve apresentaria provas de que a eleição de 2018 fora fraudada. Na fantasia alimentada pelas redes sociais, Bolsonaro acha que ganhou no primeiro turno, mas foi roubado. Oito meses se passaram e não apresentou as tais provas — até porque não as tem — nem falou mais no assunto.
A narrativa agora é futurista. À moda Trump, seguidores do presidente e até um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), falam em risco de fraude e de “interferências externas” em 2022.