A iminência de colapso nas UTIs de Porto Alegre e Região Metropolitana reacendeu a preocupação com o que os médicos chamam de “Escolha de Sofia”, referência ao filme estrelado por Meryl Streep, obrigada pelos nazistas a indicar qual dos dois filhos deveria ser morto. O trauma da mãe, retratado magistralmente no filme, tem sido usado como metáfora desde que médicos de vários países se viram diante do dilema de escolher quem vai para a UTI e quem ficará entregue à própria sorte em caso de falta de leitos.
Na entrevista que deu ao Gaúcha Atualidade na manhã desta terça-feira (21), o médico Ricardo Kuchenbecker, gerente de crise do Hospital de Clínicas, traçou um quadro sombrio, baseado nos dados de ocupação de leitos e no cenário que vivencia nos últimos dias. Os médicos ainda não estão sendo obrigados a escolher quem vai viver e quem vai morrer, como ocorreu na Itália, na Espanha, no Reino Unido, nos Estados Unidos e em algumas cidades brasileiras, mas precisam decidir quem será internado primeiro.
A escolha não é aleatória nem por ordem de chegada. Para evitar que os médicos tenham esse dilema, o Conselho Regional de Medicina aprovou protocolo que estabelece critérios objetivos para o desempate quando há mais pacientes na fila do que leitos de UTI. A resolução número 12, publicada no Diário Oficial da União em 27 de maio e detalhada pela coluna em 2 de junho, define o protocolo de regulação para casos de covid-19 nas Unidades de Terapia Intensiva de Alta Complexidade.
À época, pouca atenção se deu ao assunto, porque o colapso era uma hipótese remota. Agora, quando os principais hospitais que atendem pacientes do SUS (Clínicas, Conceição e Santa Casa) estão com mais de 90% de ocupação nas UTIs covid e alguns, inclusive privados, atingiram 100%, o protocolo volta a ser lembrado. Em síntese, o documento estabelece que a prioridade será do paciente com mais chances de sobreviver, o que coloca em desvantagem os idosos e os que sofrem de alguma doença grave.
Encerrada a entrevista de Kuchenbecker, o diretor de regulação do Estado, Eduardo Elsade, escreveu para o programa dizendo que a situação está sob controle, que ainda restam leitos e que, antes da “escolha de Sofia”, o Estado tem outros mecanismos para atender aos pacientes. Citou a transferência para o Interior, a compra de leitos em instituições privadas e o atendimento em emergências e salas de recuperações pós-operatória, com respiradores de transporte (móveis).
O problema dessa ambulancioterapia ao contrário, é que, como nos casos graves a covid ataca o sistema respiratório, boa parte dos pacientes não suporta uma viagem de centenas de quilômetros. A compra de vagas na rede privada esbarra no esgotamento da capacidade — nesta terça-feira, por exemplo, o Hospital Moinhos de Vento estava com 100% dos leitos de UTI covid ocupados. O atendimento em UTIs improvisadas não tem, segundo Kuchenbecker, a mesma eficiência.
— Foi isso que fez subir o índice de mortalidade na Itália — lembrou o médico.
A Serra e a Região Metropolitana são os principais focos de preocupação. A persistir o atual crescimento da demanda, até o final do mês não haverá leitos disponíveis. O problema não é apenas de falta de estrutura física, mas de profissionais com experiência em UTI e domínio da técnica de entubação para os que precisam de respiração artificial. A contaminação de centenas de profissionais de saúde, somada à dificuldade de contratação e ao estresse dos que estão trabalhando, complica o quadro.
O desafio de Elsade como responsável pela regulação será transferir para o Interior os pacientes transportáveis e atender, ainda que de forma precária em Porto Alegre e municípios vizinhos, os que não suportariam uma viagem.