Faz hoje um mês que o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, deu aval a uma campanha parecida com a que ganhou corpo nas redes sociais em todo o Brasil. “Milão não para”, era o lema que sintetizava a decisão de uma das cidades mais conhecidas da Itália de não se render ao coronavírus. O isolamento, tal qual fizera a cidade chinesa de Wuhan, estava fora de cogitação. Um dos maiores centros financeiros e de moda da Europa, Milão não podia parar. Era preciso manter girando a roda da economia, preservar empregos, atrair turistas e seguir a vida.
Quando a hashtag #MilãoNãoPara viralizou na internet, a capital italiana da moda sentia-se a salvo do vírus. A Lombardia tinha 258 pessoas infectadas e 12 mortes. Hoje, Giuseppe Sala reconheceu que errou. E errou feio. De 26 de fevereiro a 26 de março, morreram 4.474 pessoas em Milão. A cidade que não para teve de parar. Nela foram registradas, até aqui, 54,4% das mortes do país. O prefeito fez um mea culpa em entrevista a uma emissora italiana:
— Muitos se referem àquele vídeo que circulava com o título MilãoNãoPara. Era 27 de fevereiro, o vídeo estava explodindo nas redes, e todos o divulgaram, inclusive eu. Certo ou errado? Provavelmente errado. Ninguém ainda havia entendido a virulência do vírus, e aquele era o espírito. Trabalho sete dias por semana para fazer minha parte, e aceito as críticas.
Que Milão tenha subestimado o poder destrutivo do coronavírus, até se entende. Faltavam informações, os dados na China são considerados inconfiáveis e, afinal, os italianos não comem bichos exóticos como os chineses.
Por bem no dia em que o prefeito de Milão reconhece o erro, empresários brasileiros se mobilizam para derrubar as restrições impostas por prefeitos e governadores. Gente que nada aprendeu com a Itália repete o mantra de que o coronavírus vai matar menos do que outras doenças e que a quebradeira na economia é motivo suficiente para interromper a quarentena e “retomar a vida normal”.
O Brasil fechou o dia com 77 mortos e 2.915 casos confirmados. Lembra quantos eram em Milão há um mês? Doze mortos e 258 infectados. Hoje, Milão é uma cidade fantasma, que não consegue sequer enterrar seus mortos.
A campanha de oposição ao “Se puder, fique em casa” ganhou impulso com as reiteradas tentativas do presidente Jair Bolsonaro de tratar o coronavírus como uma gripezinha, contrariando as medidas do próprio governo que ele, em tese, deveria liderar. No Rio Grande do Sul, os alvos são o governador Eduardo Leite o prefeito Nelson Marchezan e a mídia.
A insanidade chegou a tal ponto que no esgoto da internet começou uma campanha para forçar Marchezan a rever os decretos e autorizar a abertura do comércio, por exemplo. Uma das peças fornece o telefone pessoal do prefeito e diz: “Está sem ter o que fazer na quarentena? Quer trabalhar e o prefeito não deixa? Seus problemas acabaram! Aproveite seu tempo livre e mande uma mensagem carinhosa ao Marchezan. Vamos JUNTOS agitar a quarentena dele”. Os robôs entraram em ação para multiplicar a mensagem e infernizar o prefeito que, até aqui, tem se comportado com a responsabilidade que o cargo exige.
Carreatas estão previstas para esta sexta-feira, pedindo a volta das atividades econômicas. Notem bem: carreatas, que é para ninguém se contaminar. Marchezan e Leite são cobrados pelas federações empresariais a definir um cronograma para a normalização das atividades. Falta combinar com o vírus, que segue fazendo vítimas e obrigando governos de todos os continentes a acelerar as medidas de contenção.
Enquanto o Brasil segue construindo hospitais de campanha, preparando a rede hospitalar para um mês de caos, Bolsonaro brinca com o vírus e diz que brasileiro “não pega nada”:
— Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí.
A ideia deste diário era falar de amenidades, da rotina do isolamento e de como uma família de quatro pessoas lida com o trabalho em casa, mas acabo dando mais espaço ao clima do país, porque acredito que estes registros servirão para, no futuro, entender como as coisas se deram neste ano da peste.
Precisei ir ao supermercado. Impressionante. Eram 13h e o estacionamento estava tão vazio que pude deixar o carro na sombra. As ruas também. Não senti falta de um produto sequer. Nos corredores, deparei com clientes usando máscaras. Se não estão doentes, para que a máscara? Notei que os preços de vários produtos aumentaram. Lei da oferta e da procura.
Antes do ponto final, veio a notícia: morreu o segundo paciente infectado pelo coronavírus em Porto Alegre, um homem de 88 anos, que estava na UTI.