Todas as vezes que as autoridades falam em “isolamento vertical”, a imagem que se forma no meu cérebro é a deste apartamento no 11º andar de um edifício que parece mais alto porque foi construído no topo de uma colina. Nada a ver com o sentido de uma das expressões mais citadas desde que o presidente da República passou a questionar o isolamento quase total a que estamos submetidos. Chama-se horizontal porque engloba os viventes de todas as idades.
Neste apartamento somos quatro que serão divididos em dois grupos se prosperar a ideia de adotar o isolamento vertical, traduzido grosseiramente por “jovens pra cá, velhos pra lá”. Espero que não prospere, porque acredito mais na eficácia do método que recomenda ficar em casa, se possível, ao que libera os jovens para se expor ao vírus e, em tese, deixar os da minha turma protegidos na redoma.
Em tese, porque é simples implantar o isolamento vertical em uma família de classe média ou alta, em que cada um tem seu quarto ou que os filhos moram em outro apartamento e podem ir ao supermercado e à farmácia.
Como se faz isolamento vertical para as famílias de baixa renda, que moram em cubículos, com cinco ou seis pessoas dividindo o mesmo cômodo? Não há como mandar para o segundo andar, como imaginam alguns formuladores de teorias. Manda os velhinhos, os diabéticos, os cardíacos e os pacientes com câncer para uma quarentena em hotéis pagos pelo governo? Ou a ideia é que, se morrerem, será o efeito colateral de uma ação heroica para salvar a economia?
Essas reflexões me trazem angústia, porque daqui deste prédio de classe média enxergo, lá longe, as luzes dos casebres de meia dúzia de vilas. Os edifícios escondem outras tantas que atendem por nomes estranhos como Cachorro Senado e Maria Degolada. Como seria uma isolamento vertical na Cruzeiro, esta cidade dentro da cidade?
É fácil fazer quarentena com internet de alta velocidade, computador modernos celular e tablet, numa casa em que cada um tem seu quarto e ainda se pode trabalhar na sala, como fazemos minha filha e eu. Como fazer isolamento nas favelas sem saneamento básico? Recomendar que limpe as mãos com álcool gel se a pessoa não tem banheiro em casa? Esse olhar panorâmico sobre a cidade tem me tirado o sono.
A falta de carros nas ruas faz parecer que a madrugada começa logo depois do Jornal Nacional. O que será do amanhã?
Aqui estamos lidando relativamente bem com a quarenta, a despeito da vontade louca de sair para a rua, tomar sol e sentir o vento no rosto. Nestes nove dias de convivência 24 horas por dia nos tornamos mais tolerantes. Sem empregada doméstica e sem perspectiva de poder chamar uma diarista, ficamos um pouco (só um pouco) mais organizados. A louça vai para a máquina tão logo terminadas as refeições. As panelas não se acumulam. Cozinhar não é nenhum sacrifício. Meu marido tem prazer em criar pratos e, por mais simples que sejam, vai fotografando para montar um painel gastronômico da quarentena. Fez até uma pastinha no celular.
Nem tudo é cor de rosa. Minhas unhas estão em frangalhos de detergente, sabão, álcool gel e a falta de manicure. Fiz a TED do valor de quatro semanas, na esperança de que ainda em abril eu possa sentar diante da Odete, que há duas décadas cuida das minhas mãos. Fiz uma escova virtual com o Rodrigo. Se o isolamento se prolongar, farei um corte imaginário com o Guilherme. Os autônomos precisam que quem tem emprego continue pagando por seus serviços. Não se gastará nada além do que já estava no orçamento. Só não teremos o trabalho do profissional, mas quem se importa?
O mundo segue paralisado. Há cada vez menos aviões no ar. Quase todas as grandes cidades do Ocidente estão paradas. Até Nova York. A cada dia mais e mais governos decretam isolamento. Daqui a pouco, saberemos dizer “fique em casa” em centenas de idiomas.
Em ritmo acelerado só o contador de mortos e infectados. Hoje a Espanha ultrapassou a China. Foram mais de 700 mortos em 24 horas. No Brasil, os números ainda são baixos. São 57 mortes no total (11 a mais do que no dia anterior) e 2.433 casos confirmados, mas todas as autoridades dizem que o pior está por vir.