Mónica Baltodano foi uma das principais comandantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que derrubou, ao lado de Daniel Ortega, a ditadura de Anastásio Somoza, em 1979, na Nicarágua. Dois anos antes, capturada pelo regime autocrático que havia sequestrado seu país, ela foi presa e torturada por nove meses. Após sua libertação, ela se tornou membro do Estado-Maior do grupo e promovida ao status de comandante guerrilheira após a vitória da revolução, posto que só três mulheres alcançaram.
Líder histórica da Revolução Sandinista, Mónica ocupou vários cargos importantes no governo, mas desde 2005 não reconhece mais o governante que inspirou os ideais pelos quais lutou. Deixou a Frente Nacional, fundou um grupo de oposição, mas precisou deixar o país diante do recrudescimento da perseguição por parte do regime a opositores políticos. Ela foi uma das nicaraguenses que Ortega retirou nacionalidade. Hoje, Mónica vive exilada no Exterior, de onde denuncia os crimes da ditadura.
Nesta entrevista à coluna, ela descreve os crimes da família Ortega em seu país, mas também cobra do governo Luiz Inácio Lula da Silva uma posição crítica ao regime.
- Queríamos uma posição mais clara, que não dê lugar a que se entenda que o governo de Lula, por ser de esquerda, não condena esses crimes que Ortega cometeu. Porque isso é um desprestígio muito grande para as organizações de esquerda e em particular para o PT e para as organizações que respaldam o presidente Lula - afirma.
A seguir, trechos da conversa, feita por telefone na noite de quinta-feira (17).
Que informações a senhora tem recebido de amigos, vizinhos e colegas de militância sobre a situação dentro da Nicarágua?
Na Nicarágua, desde 2018, todas as garantias de uma democracia estão suspensas. Mas, desde junho de 2021, a repressão tem está em uma linha crescente, sem comparação com situações tínhamos vivido antes. Depois da prisão de todos os pré-candidatos à presidência, houve uma radicalização. Temos 300 presos políticos desde então e todos foram julgados sem garantias do devido processo legal. As condições carcerárias em que vivem violam seus direitos essenciais. Foram fechados todos os meios de comunicação independentes, 3,3 mil organizações não governamentais e todas as câmaras empresariais. Outro elemento é a perseguição à Igreja, incluindo proibição de procissões religiosas. Não há na Nicarágua nenhuma possibilidade de se organizar nem de expressar um ponto de vista diferente. Entre os presos em 2021, havia pessoas que simplesmente deram uma declaração em um meio de comunicação e, no dia seguinte, foram capturá-la. Expressar a mais mínima dissidência é motivo para prisões. Nessas condições, construir por dentro movimentos independentes é impossível. Os que ficaram e têm opinião diferente (do governo), têm de guardar absoluto silêncio para não correr risco de ser preso.
Como é para a senhora ver tudo isso, uma vez que lutou na Revolução Sandinista?
É uma mistura de sentimentos: por um lado, raiva de ver como se manipulam o ideal, os símbolos da revolução, os heróis daquelas jornadas. Como manipulam isso em função de projeto de poder e controle de Ortega. Também dá tristeza, porque essa manipulação confunde sobretudo as novas gerações, que não puderam viver a revolução, que não têm essa experiência, porque acreditam que Ortega é igual àquela revolução e que ter ideias de esquerda é seguir essas práticas ditatoriais. Me indigna também porque muita gente, muitos jovens da geração dos anos 1970, incluindo amigos e familiares, morreram por uma causa que foi completamente adulterada, personalizada e privatizada. Mas também provoca um sentimento de compromisso de seguir fiel a esses ideais e de lutar por eles, denunciando o regime, suas atrocidades e mentiras.
A palavra ditador é pequena para ele (Ortega), porque ele é totalitário: controla todos os poderes e instituições.
A senhora descreve Ortega como ditador?
Absolutamente. E a palavra ditador é pequena para ele, porque ele é um ditador totalitário, que controla todos os poderes e instituições. Não somente as instituições repressoras, mas também o Poder Judiciário, o Poder Eleitoral, as prefeituras, as universidades. Ele estabeleceu um regime que impede de todas as formas que se articule as novas gerações, que tenham espaço onde possam se manifestar. Isso seria o normal, as universidades, os centros acadêmicos, sempre foram, na história das lutas da humanidade, espaços privilegiados para pensamento e ação organizada. É um regime ditatorial que tem muitos traços fascistas, totalitários. E está demonstrado que é uma ditadura sanguinária.
A senhora era próxima a Ortega. O que acredita que mudou em sua personalidade?
De sua personalidade, não mudou muito. Sempre foi uma pessoa muito introvertida, pouco transparente. Nunca foi uma pessoa muito aberta, beligerante. Isso favoreceu que naquelas condições dos anos 1970 se considerasse que ele seria uma pessoa capaz de contribuir para superar as contradições da própria estrutura revolucionária, de uma frente guerrilheira que tinha se dividido. Por sua atitude não muito beligerante, ele aparentava ser uma pessoa que poderia criar consenso no interior da guerrilha. Mas as principais mudanças que se pode notar é como nos anos 1990 ele decidiu apropriar-se das candidaturas, só ele poderia ser candidato à presidência. Nunca a Frente Sandinista teve outro candidato que não fosse ele desde 1984. E ele construiu, a partir de 1998, com sua esposa, o projeto em torno da busca pelo poder. A obsessão pelo poder é o que explica o abandono dos postulados originais de organização política. A Frente Sandinista deixou de ser um partido político para se converter em um mero aparato a seu serviço, um propósito de poder pelo poder. Ao redor de sua figura, não para um projeto para a sociedade. Isso fez com que tenha se convertido em um capitalista que se aliou aos grandes capitais da Nicarágua e que governou de mãos dadas com o capital nacional e transnacional. É o abandono absoluto de todo aquele projeto que significou a revolução de 1979.
Como a senhora acredita o Brasil deveria se posicionar?
Seguimos esperando que haja uma posição clara de condenação às violações brutais dos direitos humanos nicaraguenses. Que não deixe lugar à dúvida de que o governo de Lula está contra as violações aos direitos humanos cometida por Ortega e demonstradas pelos organismos interamericanos e pelas Nações Unidas. Queríamos uma posição mais clara, que não dê lugar a que se entenda que o governo de Lula, por ser de esquerda, não condena esses crimes que Ortega cometeu. Porque isso é um desprestígio muito grande para as organizações de esquerda e em particular para o PT e para as organizações que respaldam o presidente Lula. É um tema muito importante, porque desde 2018, o Fórum de São Paulo, onde estavam os principais partidos de esquerda, não condenou Ortega. Ao contrário, o respaldou. Engoliram o conto de Ortega de que havia ocorrido uma tentativa de golpe de Estado na Nicarágua. Isso é um conto que ninguém com um pouco de conhecimento do que ocorre na Nicarágua engoliu. Mas a esquerda quis engolir. Uma parte da intelectualidade nunca engoliu, principalmente pensadores como Noam Chomsky, alguns como Pepe Mujica foram bem claros nesse sentido. Com a chegada de Gabriel Boric (ao poder no Chile), ele manteve uma posição clara de rejeição à existência de presos políticos, às violações dos direitos humanos. Agora, também o comunicado de Gustavo Petro (presidente da Colômbia) foi muito claro. Mas o Brasil não tem uma posição tão evidente. E isso contribui para a confusão da opinião pública nacional, favorece a mensagem da direita, de que eles são paladinos dos direitos humanos, e de que a esquerda, não. Isso é muito nocivo não só para a Nicarágua, mas para a esquerda latino-americana.
Com um pouquinho de análise, (os que apoiam Ortega) se darão conta de que a maioria dos que fizemos a revolução estamos contra Ortega.
Muitas pessoas das gerações mais antigas do PT têm dificuldade em criticar Ortega porque eram próximas a Ortega. É difícil romper com o que a revolução sandinista significou inclusive para a esquerda brasileira?
Sim, mas acredito que, com um pouquinho de análise, se darão conta de que a maioria dos que fizemos essa revolução estamos contra Ortega. Os principais atores: dos nove comandantes da revolução, apenas um segue o respaldando (Ortega). Todos os demais estão contra e são reprimidos por ele. Se forem um pouco sinceros ao analisarem o que está ocorrendo na Nicarágua, não restará dúvida de que há um ditador que se aproveita daquela história, mantém uma retórica anti-imperialista e revolucionária, mas cuja prática é um modelo econômico absolutamente neoliberal, extrativista e patriarcal, que violenta os direitos das comunidades indígenas e que está preocupado com o controle político e econômico para o benefício de sua família e de seu círculo próximo. Não há como confundir. Esse projeto não tem nada a ver om a Revolução Cubana, com outros processos como os que se desenvolveram na Bolívia e na Venezuela, que guardam distância do que estamos vivendo nós, nicaraguenses. A prova é que nenhum desses governos fez o que está fazendo Ortega, ao tirar a nacionalidade de mais de 300 pessoas, retirar a pensão de aposentadoria da terceira idade, expropriar seus bens, buscar que vivamos na condição de mendigos. Isso nenhuma das ditaduras mais cruéis que dominaram a América Latina pelo lado da direita fez. Há um enfoque muito do tempo da Guerra Fria, de que os que estão com Ortega são anti-imperialistas e todos os demais são imperialistas. Trata-se de um enfoque binário, que não leva em conta os detalhes do processo brutal de repressão que estamos vivendo.
Não se pode dizer que a esquerda é um bloco monolítico. Qual o papel dela na América Latina neste momento histórico, que é diferente do que se viveu nos anos 1970 e 1980?
O projeto transformador de nossas realidades não está bem delineado pela esquerda. Há alguns traços: você escuta Petro e se vê bem claramente que ele tem um projeto muito mais claro. Naquele tempo (anos 1970), aspirávamos possível construir um socialismo baseado na socialização dos meios de produção e que não se poderia conviver com o livre-mercado e com a propriedade privada. Agora, isso não está tão claro e delineado. Tampouco está claro, por exemplo, o papel da força de esquerda: há algumas que estão muito comprometidas com o tema de respeito à natureza, outras, menos. Por isso assistimos a um grupo que se diz de esquerda, mas que segue sendo extrativista, depredadores da natureza, que tentam resolver problemas sociais só na base de um crescimento econômico baseado nas matérias-primas, sem mudar o modelo. Isso é parte dos desafios da esquerda agora. Mas se há um ponto em que não deveria haver dúvida é com relação à liberdade. Como diz Rosa Luxemburgo: todo o resto, sem liberdade, é nada. Não se pode aspirar transformações econômicas e sociais na base da renúncia da liberdade. Não se pode pensar em transformação do modelo se não há compromisso com os direitos humanos, com livre mobilização, livre pensamento. Nesse tema, não deveria haver dúvida. Lamentavelmente, algumas forças, pelo menos no caso da Nicarágua, dão mensagem dúbia. Isso nos lembra o que ocorreu com o socialismo real na URSS, onde, apesar de todas as denúncias das barbaridades de Stalin, uma parte da esquerda ainda hoje segue apegada a essa lógica. Isso desprestigiou muito o pensamento revolucionário à época e é o que vai ocorrer no caso da Nicarágua. Se não houver uma ruptura clara com os crimes de Ortega, isso vai desprestigiar o pensamento e propostas de esquerda.