Não é de hoje que a Nicarágua se torna tema de disputa eleitoral no Brasil. Até porque o reino de Daniel Ortega virou uma espécie de nova Venezuela - modelos de como tiranos podem corroer, por dentro, democracias.
Com o acirramento da disputa presidencial por aqui, no segundo turno, o país centro-americano voltou a ser epicentro da polarização entre aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, especialmente depois do debate da Band TV, Folha de S. Paulo, UOL e TV Cultura, no domingo (16), quando o assunto veio a tona ao vivo.
Aliás, diga-se de passagem, os dois candidatos devem muito aos eleitores explicações sobre suas propostas em política externa, em temas como a relação com China e Estados Unidos, os dois principais parceiros comerciais brasileiros, o quase naufragado acordo Mercosul-União Europeia, a esquecida relação com os vizinhos sul-americanos, o mundo a ser reconstruído no pós-pandemia de coronavírus e os desafios hercúleos da guerra na Ucrânia, por exemplo. Mas isso passa ao largo dos debates e planos de governo, que, em geral, preferem a simplificação do duelo entre esquerda e direita.
Então, por ora, fiquemos na questão da Nicarágua. O que está ocorrendo lá e qual a razão de o país centro-americano se tornar a pedra de toque do embate brasileiro?
A Nicarágua, governada pelo esquerdista Daniel Ortega, deixou há tempos de ser uma democracia, como já escrevi aqui. Inclusive, líderes latino-americanos, como o chileno Gabriel Boric, buscaram descolar sua imagem do regime nicaraguense e o condenaram - algo que a esquerda brasileira, em sua maior parte, evita fazer. Ortega, herói da Revolução Sandinista, está no poder, agora, desde 2007. De forma ininterrupta. As eleições são de fachada. Na última, por exemplo, em novembro de 2021, seu governo prendeu sete candidatos da oposição sob acusação de lavagem de dinheiro e traição à pátria - é como se todos os postulantes ao Planalto, no primeiro turno, fossem detidos. Mais de 30 outros políticos estão atrás da grades, além de líderes sindicais, jornalistas e estudantes, conforme a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Os julgamentos também são de fachada, com cartas marcadas, em tribunais de primeiro grau e, mesmo na Suprema Corte, cujos magistrados foram nomeados por Ortega - daí uma forma de perverter a democracia por dentro, viabilizando a aprovação de leis que estendem prisões preventivas e acusando, quem discorda do governo, como traidor. Ele também domina o parlamento, cancelando o registro dos partidos que integram a oposição.
A nova investida do protoditador é contra a Igreja Católica. Desde janeiro, nove padres e um bispo, Rolando Álvarez, foram presos. Após décadas de uma relação que misturou momentos de proximidade e de tensão, Ortega elevou a voz com o Vaticano, que chamou de "ditadura perfeita" (porque bispos são escolhidos pelo Papa, o que, na visão turva do regime, constituiria uma decisão autocrática).
Ortega escalou a tensão, rotulando religiosos de "assassinatos e o golpistas". Tudo isso porque a Igreja Católica nicaraguense tem denunciado as violações de direitos humanos no país.
No debate do domingo (16), Lula disse que, "se Ortega estiver errando", "que o povo o pare". Mas, como se sabe - e o ex-presidente sabe bem - é muito difícil parar (e viver) em uma ditadura. No caso da imprensa, o principal jornal do país, o La Prensa, precisou retirar, de forma clandestina, todos os funcionários do país. Sete rádios católicas foram fechadas.
Como já escrevi aqui, há muito tempo que países disporem de processos eleitorais não é garantia de democracia. Saddam Hussein costumava ser eleito com mais de 100% dos votos, o mesmo ocorre com Bashar al-Assad na Síria, um pouco mais comedido, se autodeclarava com 90% da preferência. Na Venezuela de Nicolás Maduro, sempre houve eleições, e a nação vizinha foi caindo na tirania. Na Nicarágua, que inspirou a esquerda nas décadas finais do século 20 com a Revolução contra Somoza, é hoje motivo de constrangimento. Ortega, outrora herói da libertação nacional, virou déspota.
Essa é a realidade da Nicarágua. Importante, necessária de se saber e refletir. Cada candidato, no caso brasileiro, tem seus próprios esqueletos no armário - Lula traz no escopo Nicarágua e Venezuela. Bolsonaro guarda Viktor Orbán, na Hungria, Vladimir Putin na Rússia, e os xenófobos do partido Lei e Justiça da Polônia. O momento deveria servir para discutirmos a vilipendiada imagem do Brasil lá fora e o que queremos do nosso Itamaraty. Mas política externa, infelizmente, só é lembrada pelos maus exemplos - ou quando falta insumo para vacina.