No fundo do mostruário do Museu do Senado Federal, depositada na diagonal, a Constituição do Brasil repousa amassada, com páginas dobradas e com um pedaço pontiagudo de vidro sobre sua capa. A Carta Magna resistiu. Foi poupada da água, quando os splinkers foram acionados no interior do prédio do Congresso Nacional, encharcando obras de arte, tapetes e móveis do Senado Federal. São 10h30min de segunda-feira (9), quando entro no prédio invadido no domingo (8) pela turba de vândalos. O rastro de destruição se descortina aos poucos: alguns quadros dos presidentes da Casa, do Império à República, estão pelo chão. Os rostos estão separados das molduras. Em outro canto, o brasão dourado da República foi partido em três.
Praticamente todos os vidros da frente do Congresso estão danificados. Em algumas janelas, é possível passar do interior do prédio para a área externa sem maiores dificuldades. Circular pela frente do Congresso permite reconhecer cenas do dia anterior, quase como um dejá vu. Aqui, bolsonaristas radicais desfilaram a ira que envergonhou a nação.
Na chapelaria, onde o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, receberam o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º, para a posse, não há sequer um vidro inteiro. Estão estilhaçados, tornando a caminhada perigosa.
No interior do Congresso, as marcas da ação dos vândalos estão nas paredes espelhadas aos pedaços e na terra retirada das folhagens e espalhada pelo tapete do Salão Azul, tradicional ponto de articulações entre senadores em dias de votação. No plenário, símbolo maior da Câmara alta do parlamento, ativistas brincaram de escorregar sobre a bandeira brasileira pintada sobre o carpete. Observo centenas de garrafas d'água acumuladas pelos cantos, mais vidros quebrados e muito lixo. Há também camisetas e moletons perdidos sobre os assentos dos senadores ou as placas indicativas de seus nomes. Aqui, pelo menos 30 ativistas foram detidos pela Polícia Legislativa. Próximo à mesa do Senado, uma estátua de mulher negra, aparentemente presente de um governo africano ao Congresso brasileiro, está danificada. Às pressas, no butim que se abateu sobre os três principais prédios da República, alguém a esqueceu sobre o púlpito. Ou não reconheceu seu devido valor e sua intenção era apenas destruí-la. Na Sala Senador Luiz Henrique da Silveira, onde parlamentares costumam fazer a pausa para cafezinho, uma trincheira foi erguida com mesas e cadeiras impedindo o acesso ao resto do Salão Azul. Não se sabe por quem.
Perto dali, no Palácio do Planalto, o cenário não é muito diferente. Mas o sentido de urgência prevalece na sede do Executivo: trabalhadores acelerados limpam a rampa com água e sabão, enquanto operários colocam ao chão o que sobrou de vidros estourados. Agora, são 15h30min. Cada estrondo das enormes vidraças que caem ao chão ecoa pela Praça dos Três Poderes esvaziada. O Comitê de Imprensa fora poupado, mas a sala dos fotógrafos foi arrombada. Equipamentos foram levados, e, em mais uma marca do domingo insano, ativistas defecaram no local. Agora, tudo está limpo, mas faltam HDs, equipamentos fotográficos e computadores que foram roubados. No segundo andar do Planalto, palco de algumas cerimônias de posse de ministros da semana anterior, o cheiro de sabão predomina: a falta de cadeiras, retiradas para a limpeza, revelam o amplo salão nobre vazio. Há pressa para mostrar que as instituições estão funcionando. Que a normalidade retornará a Brasília E para avisar ao mundo que a Constituição foi preservada, ainda que maculada.