Ainda que com meias palavras, por vezes titubeante e com a tradicional ambiguidade de seu discurso, o presidente Jair Bolsonaro se despediu nesta sexta-feira (30) de atos públicos, por meio da janela de 51 minutos de sua Live, rompendo um silêncio de quase dois meses.
Não falou para toda a nação, posto que preferiu, como de hábito, as plataformas digitais, e não um pronunciamento em cadeia de rádio e TV. Comunicou-se com seu público, e isso ficou claro quando se referia a "vocês" em sua narrativa.
Bolsonaro, apesar dos pesares, disse o que tinha de ser dito. Trucando, ambivalente, mas falou o que precisava ser falado a dois dias da troca de comando da nação.
Sem usar essa palavra, finalmente reconheceu a derrota para o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno, ao declarar que "o sol nascerá no dia 1º" ou que "o Brasil não vai acabar dia 1º".
Ainda que por vias tortas, admitiu que haverá um novo governo no Brasil a partir do início da tarde de domingo (1º). Tanto admitiu o novo mandato que se permitiu lançar críticas à formação do futuro governo.
- Compare os nossos ministros com os indicados do opositor - afirmou, claro, sem se referir a Lula.
De forma truncada, reconheceu que haverá governo:
- O que vejo desse governo que está previsto assumir é um governo que começa capenga, já com muitas reações.
Sobre a cerimônia de posse, disse:
- Vocês estão vendo quem deve se fazer presente: Maduro, Ortega, o Foro de São Paulo todo presente (...) Isso é um mal sinal, onde esse pessoal com essa ideologia assumiu, o país ficou pior.
Aqui, um parêntese: Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela, não deve comparecer porque está proibido de entrar no país pelo próprio Bolsonaro. Ortega não confirmou.
Ainda na linha do que o presidente disse "meio sem dizer", está o fato de que, tudo indica, ele não planeja resistir à transferência de poder:
- Hoje é 30 de dezembro (errou a data e depois corrigiu), tá prevista a posse para 1º de janeiro. Eu busquei, dentro das quatro linhas, saída para isso. Se tinha saída pra isso, se podia questionar, eu não saí, ao longo de quatro anos de mandato, das quatro linhas. Ou vivemos na democracia ou não.
E arrematou:
- Ninguém quer uma aventura.
É preciso ficar claro. Ao dizer "aventura", o presidente quis dizer "golpe".
Na sequência, tergiversou:
- Em nenhum momento fui procurado para fazer nada de errado, seja violentando o que for. Entendo que estou fazendo minha parte. até hoje, fiz minha parte dentro das quatro linhas. Agora, certas medidas tem de ter apoio do parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos, não pode acusar apenas um lado, ou acusar a mim, você que quer resolver o assunto... Por vezes, você pode até ter razão.
Bolsonaro repetiu muitas vezes que o Brasil não vai acabar no dia 1º, quase como uma fresta de esperança a seus seguidores ("o bem vai vencer"). Na sequência, voltou a se referir, implicitamente, à intervenção das Forças Armadas.
- Alguns devem estar me criticando. Talvez até tenham razão. Mas não posso fazer algo que não seja bem feito e os efeitos colaterais não sejam danosos. Tudo o que um país faz tem reflexo - afirmou.
Pode-se intuir que, diante de um eventual golpe, o Brasil ficaria isolado internacionalmente.
A fala do presidente também teve lamúrios, em que se apresentou como vítima.
- Não podíamos falar sobre covid. Tudo era "faltava comprovação científica".
Ao menos, reconheceu os mortos da pandemia, algo que, em muitos momentos, não o fez.
- Lamentavelmente, a covid matou no Brasil 600 mil pessoas.
Sobre sua postura em relação à vacina, referindo-se a um discurso no qual relacionoua prevenção ao HIV, declarou:
- Li um trecho da Revista Exame sobre vacina e HIV. Tô sendo processado, como criminoso.
E acrescentou:
- Se falar em urnas, você pode ser processado.
Teve também mentiras: disse que o Brasil é o segundo país mais digital do mundo. Na verdade, é o sétimo. Atrás de Coreia do Sul, Estônia, França, Dinamarca, Áustria e Reino Unido.
Ele afirmou também que a gasolina subirá R$ 1 a partir de domingo, junto com o diesel e o gás de cozinha. Com a ressalva.
- É o novo governo. Não é nosso.
Não há sinais de aumento.
Mas, voltando ao argumento inicial, disse o que tinha de ser dito: além de reconhecer implicitamente a derrota, condenou o plano terrorista de explodir uma bomba em um caminhão com combustível no aeroporto de Brasília.
- Nada justifica aqui em Brasília essa tentativa de ato terrorista no aeroporto de Brasilia. Nada justifica. Um elemento que foi pego, graças a Deus, com ideias que não coadunam com nenhum cidadão. Agora massifica em cima do cara como bolsonarista o tempo todo. É a maneira da imprensa tratar - declarou.
Ao final, mais uma vez, dirigiu-se a seus seguidores, não a toda a população brasileira:
- Acredito em vocês, acredito no Brasil, acima de tudo acredito em Deus. Temos um grande futuro pela frente. Perde-se batalhas, mas não vamos perder guerras. Muito obrigado por terem me proporcionado nesses quatro anos à frente da Presidência da República.
Não reconheceu explicitamente a derrota, ensaiou uma oposição, não disse se irá para os Estados Unidos antes da transferência de poder (o que deve ocorrer) e apenas fez, para seu público, um agradecimento a quem ficou, sob chuva, alagamento (no caso de Brasília) e sol, por 60 dias, acampado em frente aos quartéis na esperança de que seu desejo pessoal alterasse os rumos do país por vias que não a do voto.