O Reino Unido muda sem mudar - e isso, por si só, já seria um problema para a Europa, que enfrenta os maiores desafios desde a Segunda Guerra Mundial em razão do cenário pós-pandemia, inflação, crise energética e guerra no continente.
A ascensão de Elizabeth (Liz) Truss ao posto de primeira-ministra - a terceira na história do reino britânico, depois de Margaret Thatcher e Theresa May - é quase uma continuidade de Boris Jonhson. O mesmo ocorreria se o eleito fosse Rishi Sunak, já que ambos integravam o governo do primeiro-ministro que renunciou em julho.
Mas no caso de Liz, sua imagem está ainda mais associada a Johnson porque ela foi a cara da política externa britânica nos últimos seis meses de guerra na Ucrânia. E, como estamos falando do governo mais vocal da Europa contra a Rússia e a favor do governo Volodimir Zelensky (Johnson visitou três vezes Kiev em conflito), isso não é pouca coisa. Ela também está no governo desde o início, em 2019. Quando um a um os ministros de Boris Johnson foram caindo -inclusive Sunak, um dos últimos -, em meio aos escândalos, Liz permaneceu fiel, afirmando que, em meio a uma guerra, não era o momento de sair.
Mas qual razão de ela ser um problema para a Europa? Há todo um clima de desconfiança em relação a Liz, porque ela, tudo indica, deve virar ainda mais as costas para o bloco econômico. Dias atrás, ela desviou de uma pergunta sobre se considerava Emmanuel Macron, o presidente da França, uma das líderes da UE, "amigo" ou "inimigo". A volta que ela deu para evitar responder levou um dos líderes da UE a dizer:
— É desconcertante. Estamos 200% focados na guerra na Ucrânia e na inflação generalizada.
Ainda que todos odeiem a Rússia, o entendimento é que, uma Europa desunida, favoreça a Rússia não apenas na Ucrânia, mas, a partir dela, uma projeção de poder de Vladimir Putin sobre o continente. E, como se sabe, o Reino Unido não integra mais a UE, e Liz tem apoiado propostas de romper o acordo do Brexit - que mantém alguns laços entre o bloco e o arquipélago britânico. Não por acaso, até o momento Macron, diferentemente de seus pares no continente, se manteve em silêncio sobre a escolha de Liz. Nem um "Parabéns" sequer saiu do Palácio do Eliseu até o início da tarde desta segunda-feira, pelo horário parisiense. Aliás, outra curiosidade: Liz era contra o Brexit, mas virou a casaca durante o processo de votação.
O ponto de atrito com a UE deve ser a rescisão do Protocolo da Irlanda do Norte no acordo do Brexit. A ideia do acordo é evitar uma fronteira dura entre a República da Irlanda (um país independente, membro da UE) e a Irlanda do Norte (que pertence ao Reino Unido, logo fora do bloco), deixando intacto outro documento importantíssimo para os dois territórios - o Acordo de Paz da Sexta-feira Santa, de 1998, que colocou fim à guerra civil.
O protocolo atual garate que a Irlanda do Norte vai permanecer dentro do território aduaneiro da UE e vai continuar cumprindo as regras de mercado do bloco. Como o Brexit, elimina o status de livre-comércio do Reino Unido com os membros da UE, as tarifas e custos das exportações entre Irlanda e Irlanda do Norte também são problema.
Liz, que não esconde elogios a Tatcher, foi a figura ao lado de Boris Johnson também em uma das medidas mais polêmicas deste ano: o polêmico plano de enviar, à força, imigrantes de diversos países que entraram no Reino Unido de forma ilegal para Ruanda - uma violação das convenções internacionais sobre imigração e refugiados, que o país assinou.
O plano, abortado na última hora por decisão do Tribunal Europeu, segue sendo defendido por Liz, que deve tentar de novo enviar os refugiados para o país africano.
No campo doméstico, Liz se diferencia um pouco de Boris Johnson, prometendo uma máquina estatal mais enxuta e dando maior ênfase a cortes de impostos. O país está diante do que os britânicos chamam de "catástrofe de inverno" em alusão às consequências do aumento dos preços da energia. O termo é um tanto exagerado - caos e catástrofe são expressões, que, aliás, a coluna costuma evitar. Mas, mesmo assim, é impressionante o aumento da energia anunciado pela agência reguladora Ofgem: o boleto médio anual passará de cerca de 2 mil libras (R$ 12 mil) para 3.600 libras (R$ 21,5 mil). Além disso, a elevação dos preços dos alimentos fez a inflação anual atingir 10,1% em agosto, a maior em quatro décadas.
Como muitas famílias não têm como pagar esse valor, a esperança recai sobre o governo. Mas a própria Liz disse recentemente, ao Financial Times, que não acredita em "fazer doações" - dureza que já deu sinais de aliviar.
Sua política é de corte de impostos - ela pretende aplicar um conjunto de reduções de rende pessoal e empresarial. Planeja ainda reverter um aumento do imposto de renda e não cumprir o planejado aumento de impostos sobre empresas previsto para o próximo ano, de 19% para 25%.
Se na agenda ela se compara a Boris Johson, os desafios são muito maiores. Com ou sem "catástrofe de inverno".