O fato de cinco ou seis mísseis balísticos, dos 11 lançados pela China, durante exercício nesta quinta-feira (4), ter caído em águas japonesas pode ser enquadrado naquilo que costumo chamar de erro de cálculo que, perigosamente, pode ser o estopim de algo maior. Guerras não necessariamente começam por gestos grandiosos ou declarações formais: às vezes, "acidentes" levam ao conflito.
A queda dos mísseis na Zona Econômica Exclusiva, águas japonesas a 370 quilômetros da costa, é algo grave. É a primeira vez que isso ocorre em tempos de paz entre as duas nações.
O exercício chinês, com tiro real, é uma resposta à visita da presidente da Câmara dos Deputados americana, Nancy Pelosi, a Taiwan, território que Pequim considera uma província rebelde. A viagem, de 24 horas, já terminou, mas deixará feridas abertas.
A China mirou Taiwan nas operações de represália, mas acertou, ainda que inconscientemente, o Japão, ambos aliados dos Estados Unidos.
Colocada no contexto, a ação assusta ainda mais: no tal exercício, a China está posicionando navios de guerra muito próximos da costa taiwanesa. E os disparos com munição real - pela primeira vez na história - ocorrem em seis áreas no entorno de Taiwan. Daí, o protesto do governo taiwanês ao dizer que a China está realizando, na prática, um bloqueio aeronaval a seu território.
O que isso significa: por segurança - leia-se medo de ser atingido -, o tráfego aéreo comercial e os navios mercantes evitam as áreas (por ar e mar).
O estreito de Taiwan, de 160 quilômetros, entre a China continental e a ilha, é uma região extremamente movimentada, rota de embarcações que levam produtos da Ásia ao Ocidente, e vice-versa.
No plano econômico, a resposta chinesa tem sido assim: proibição de importação de pesca e frutas de Taiwan e suspensão de exportação de areia. Mas espere a poderosa indústria taiwanesa de semicondutores ser atingida por embargos ou a produção ser barrada por ameaças militares para a coisa engrossar.
O risco do tal "acidente", que comentei no início deste texto, é real. Os mísseis que caíram no mar não atingiram embarcações nem mataram ninguém. Mas e se atingissem áreas de interesses japoneses ou americanos? Infraestrutura ou o território do Japão? E se matassem civis ou militares? Ou atingissem alguma base americana na ilha?
Guerras começam assim.
Não é do interesse dos Estados Unidos e da China um confronto agora em que o mundo enfrenta recessão pós-pandêmica, e os governos dos dois países estão em processo de disputas internas.
Joe Biden, nos EUA, enfrenta as midterms, as eleições de meio de mandato, e Xi Jinping, na China, deve ser realocado no poder do Partido Comunista para novo mandato em novembro.
Os aliados americanos na região, como Austrália e Nova Zelândia, também não querem guerra em seu quintal. E a China, por sua vez, sabe das dificuldades que enfrentaria para um desembarque anfíbio em Taiwan pela questão geográfica.
Só que há dois problemas aí que nem sempre aparecem nos cálculos: para a China e Xi a retomada de Taiwan não é uma questão de "se", mas de "quando". E, desde que o Partido Democrata Progressista assumiu o poder na ilha, em 2016 e foi reeleito para mais quatro anos, a opção de reunificação pacífica deixou de existir. A legenda defende uma agenda fortemente independentista - revigorada ainda mais agora pela visita de Pelosi. Será pela força que a China irá retomar Taiwan. Não estava nos planos para agora, mas Pequim pode acelerar as coisas.
Segundo: alguns podem até não querer a guerra, mas nem sempre essa decisão está à mão - e nem sempre pode depender dos Estados Unidos. O Japão, onde os mísseis caíram nesta quinta-feira (4), abandonou há horas o discurso pacifista.