Se ainda havia dúvidas sobre as reais intenções de Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia, em 24 de fevereiro, elas deixaram de existir neste domingo (31). Não era para proteger os russos étnicos da suposta perseguição do governo Volodimir Zelensky, motivo alegado pelo Kremlin para sua "operação militar especial", eufemismo particular de Putin para a guerra. Basta olhar as 55 páginas da nova doutrina Putin para a marinha, assinada pelo presidente russo em São Petersburgo.
A Rússia sem a Ucrânia é um país. Com a Ucrânia, é um império, como diz o ditado. O país parcialmente ocupado é uma peça no tabuleiro. Aliás, os falantes russos do Donbass (em especial das províncias separatistas de Donetsk e Luhansk), na Ucrânia, separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia, na Geórgia, ou da Transnístria, na Moldávia, são massa de manobra das ambições do Kremlin.
A nova doutrina para a marinha, força queridinha de Putin, deixa claro o interesse do governo de reposicionar a Rússia como potência global. A estratégia foi desenhada para a força naval, mas o pano de fundo serve para todas as forças armadas. Está claro que, se não for possível repetir as fronteiras da União Soviética - inimaginável em países como Estônia, Letônia e Lituânia, integradas ao Ocidente -, que ao menos a Rússia sob Putin consiga ampliar seu território para as áreas de maioria de falantes russos ou sustentar governos títeres em suas cercanias - caso de Belarus, por exemplo.
Foquemos no que foi anunciado em relação à grande estratégia naval: a Rússia tem quase 50 mil quilômetros de litoral, em geral ao Norte. Por isso, é natural que considere o Ártico seu novo campo de batalha. Mas o acesso às águas quentes, problema histórico da força naval russa, está expresso no documento, ao citar o Mar Negro, ponto de acesso fundamental ao Mediterrâneo. Nesse xadrez, a península da Crimeia, roubada da Ucrânia em 2014, é fulcral: ali está a base de Sebastopol. Também são fundamentais os portos de Odessa e Mariupol, palcos da guerra atual. Do primeiro, por exemplo, devem partir já nesta segunda-feira (1º) os primeiros carregamentos ucranianos de cereais, acertados em um pacto entre Rússia, Ucrânia, Turquia e Nações Unidas. Foi ali, no Mar Negro, que a Rússia sofreu até agora sua maior baixa no conflito: o afundamento de seu Moskva, joia da marinha de guerra do Kremlin, que não admite, mas tudo indica tenha sido alvo da artilharia ucraniana.
Agora, aos aspectos práticos do documento: Putin pretende tornar a Rússia grande potência marítima, que se estenda por todo mundo. Isso significa um desafio frontal aos interesses americanos. Os Estados Unidos são hoje o único país cuja força naval é capaz de atingir qualquer lugar do planeta. O documento ainda estabelece os americanos - e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) - como inimigos. No discurso, Putin ainda prometeu dotar os navios com mísseis hipersônicos - em especial a fragata Almirante Gorshkov, já nos próximos meses. Estamos falando de armas capazes de viajar a nove vezes a velocidade do som. E, para quem gosta de símbolos, a escolha para a assinatura do documento que redesenha a estratégia da guerra no mar russa foi a cidade de São Petersburgo, fundada por Pedro, o Grande, capital do czar que tornou a Rússia a grande potência marítima e elevou sua posição a potência global.