Uma brasileira é responsável por 25 milhões de itens do acervo da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, uma das mais importantes do mundo.
Natural de São Paulo, Beatriz Haspo, 59 anos, é gestora de Coleções da Divisão de Gestão e Preservação da entidade.
No total, a biblioteca contabiliza 173 milhões de itens em vários formatos, entre eles objetos raros, como as Bíblias de Gutenberg e a roupa que o presidente Abraham Lincoln usava quando foi assassinado, em 1865.
A Biblioteca do Congresso, que funcionou no Capitólio até 1897, hoje está localizada em três prédios em frente à sede do parlamento americano, em Washington, ao lado da Suprema Corte.
Beatriz veio a Porto Alegre para trocar experiências sobre digitalização e guarda de acervos a fim de oferecer subsídios e metodologias para o Projeto de Digitalização do Acervo Documental do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Sua viagem é parte do programa de intercâmbio bilateral, viabilizado com recursos do Fundo de Embaixadores para a Preservação Cultural, por meio do consulado geral dos EUA em Porto Alegre e da Associação de Amigos do Margs, Aamargs. Ela fará palestra às 14h30min desta sexta-feira (15) no auditório do museu. O título é Experiências de preservação e gestão de coleções na Biblioteca do Congresso dos EUA. A entrada é gratuita.
Antes, Beatriz concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Como foi a sua trajetória até chegar à gestão da biblioteca?
Foi uma trajetória longa, com várias outras especialidades. Inicialmente, sou restauradora e trabalhei na biblioteca na direção de conservação. Depois passei a ser gestora das coleções, o que significa estar a cargo das coleções gerais da biblioteca, pensar a preservação, acesso, políticas de empréstimo, de maneira que foi uma evolução na carreira de quase 25 anos. Tem sido um aprendizado a cada dia, cada vez conheço mais a estrutura complexa da biblioteca e podendo trazer as experiências para facilitar o acesso a nossas coleções, a preservação para as futuras gerações. Para permitir que essas estejam acessíveis, daqui 50 ou cem anos. Sou responsável por 25 milhões de itens da coleção geral. Não inclui coleções de formatos especiais nem livros raros, são basicamente livros publicados depois de 1901, que incluem panfletos, periódicos em vários idiomas. A biblioteca coleciona livros em mais de 400 idiomas.
Como foi a sua sua formação?
Foi uma formação um pouco eclética. Na época em que estudei no Brasil, não havia cursos de especialização, como existem hoje em dia, de preservação e restauro. Tenho uma formação internacional, eu sou tradutora e intérprete em alemão, inglês, espanhol e português. Fiz graduação, pós-graduação em História da Arte e fui estudar no Exterior, no Japão, na Europa, nos EUA, me especializai na área de preservação. Hoje, sei que existem cursos no Brasil nos quais você se direciona especificamente para a área de preservação. Nessa carreira, eu tenho um curso de engenharia civil. Tudo isso, misturado, colabora para eu poder aplicar na minha atividade, que também inclui construir armazéns fora da biblioteca. São milhares de itens, a gente precisa ter espaço.
Quando se pensa em arte não se associa à importância de conhecimentos mais duros, como engenharia. Mas há a questão da deterioração dos materiais e a construção de depósitos.
Exato, e acaba ajudando. Todo conhecimento acaba ajudando muito na nossa vida profissional. A gente nunca sabe para onde vai. Não tinha intenção, originalmente, de ser restauradora. Fui estudar encadernação, porque eu estava buscando uma profissão que eu pudesse ficar em casa, cuidar dos meus filhos, achei que era interessante. Entrei na encadernação, me apaixonei pela conservação, restauro, e nunca fiquei em casa (Risos). A Biblioteca do Congresso me levou para os Estados Unidos e tenho viajado o mundo inteiro.
Desse acervo, o que a senhora destaca em termos históricos?
A Biblioteca do Congresso inteira tem mais de 173 milhões de itens de vários formatos. Há manuscritos, material audiovisual, instrumentos de música, de folclore, de maneira que não são só livros. Os 25 milhões (de itens) integram a coleção que eu tenho de tomar conta. Mas a biblioteca vai muito além do formato livro. É uma coleção muito abrangente, rica, e que permite que vários pesquisadores do mundo inteiro possam encontrar lá assuntos e materiais para suas pesquisas.
Qual a importância da digitalização desses acervos?
A digitalização é um método de acesso incrível. Facilitou e diminuiu as barreiras que a gente tinha no passado, de precisar viajar fisicamente, para ter acesso ao documento. Esse processo de digitalização se tornou muito inclusivo, no qual pessoas do mundo inteiro podem acessar, experimentar, cada um no seu cantinho. Para mim, pessoalmente, é um dos processos mais inclusivos. Ao mesmo tempo, a digitalização tem os seus desafios, porque você tem de manter esse material disponível não só agora, com os equipamentos que se tem agora, mas com os que vão existir no futuro, que provavelmente não serão os mesmos. Digitalização em si não é um processo único. Tem de ser um processo contínuo e sustentável.
Às vezes, a gente não pensa que a forma de guardar esse material, em CD ou DVD, pode não existir no futuro.
Você imagina que isso é muito recente. Nos últimos cinco anos, houve uma mudança de equipamentos que você usava antes e que agora não consegue mais usar. A preservação tem de estar muito embutida nesse processo de acesso. Não é só fazer a digitalização hoje e deixar lá o documento em "pdf" para o pesquisador. Mas pensar em como vai se acessar depois. Deve ser um processo muito bem pensado.
Mesmo que o acervo seja digitalizado, é possível aos pesquisadores terem acesso aos itens originais?
A biblioteca é pública, e o acesso é irrestrito. Obviamente, como há itens muito valiosos, por exemplo, todas as bíblias de Gutenberg, a roupa que o presidente Abraham Lincoln usou no dia em que foi assassinado, esses estão digitalizados. Se a pessoa precisa de acesso, vai ter online. Mas em casos específicos e através de reuniões e decisões específicas para cada item o acesso físico é também disponibilizado. Temos todos os volumes da Bíblia de Gutenberg e também as que eram escritas manualmente, antes dessas que foram escritas com os tipos móveis. E a biblioteca tem outros documentos raríssimos, como a cópia da Declaração de Independência dos EUA ou mapas de 1507, que descrevem as Américas como conhecemos hoje. Itens raríssimos que não são apenas documentos e livros.
E o intercâmbio, o projeto de digitalização do acervo documental do Margs. Como vocês pretendem fazer?
Esse intercâmbio tem sido uma experiência espetacular, fazer essa ponte entre os dois países é uma honra muito grande. O que temos visto essa semana, os técnicos me acolheram de maneira espetacular, tanto o diretor Francisco Dalcol, como toda a equipe técnica, foi de um acolhimento maravilhoso. Tive a possibilidade de conhecer ainda mais cada etapa desse projeto que inclui não somente digitalização, mas todo um pensamento antes do que digitalizar, como encontrar esses documentos, separar, documentar, cadastrar e tornar acessível através do site. Pude participar de cada etapa do que eles estão fazendo. E foi muito enriquecedor.
Qual a sua impressão ao ver o acervo do Margs?
Fiquei encantada primeiro em conhecer Porto Alegre. Conhecer o Centro Histórico, onde existem edifícios espetaculares, inclusive o do museu. E, como experiência, eu fiquei muito impactada com o comprometimento da gestão do museu com a segurança da coleção, sustentabilidade de acesso e também com a vontade de se conectar com a comunidade à qual o museu pertence. Isso é muito bonito, enriquecedor para todos que estão trabalhando nesse projeto. Eu vi uma dedicação imensa da equipe técnica, comprometimento com o projeto. Eles pensam principalmente em proporcionar ao pesquisador e à comunidade acesso, uma experiência agradável, em conhecer não só a coleção, mas os documentos que fazem relação com essa coleção - catálogos, informações sobre os artistas, fotografias ou periódicos, dossiês, tudo o que se relaciona com essa coleção, dando uma oportunidade de conhecimento geral e completo sobre cada obra do museu.
Que experiências da gestão nos EUA é possível aplicar no Margs, embora tecnologias sejam e investimentos em cultura sejam diferentes?
Todas as experiências são válidas e podem ser intercambiáveis. A experiência nos EUA de coleções em formatos variáveis e em grandes volumes, os códigos, especificações para que as imagens sejam digitalizadas de maneira fiel às cores, essa parte pode ser transferida e usada em colaboração com o museu. E levo a experiência do museu de como eles pensaram nos seus específicos documentos, porque cada instituição é única. Cada processo é único para aquela instituição. A gente procura sugerir, e a adaptação ocorre dentro da própria instituição.
A senhora conhece a falta de investimento em cultura e bens culturais no Brasil. Em 2018, houve a tragédia no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O que podemos aprender com os EUA nessa área?
O nosso aprendizado é conjunto. Cada país tem as suas dificuldades nas áreas culturais. Todos têm. Não é privilégio de um ou outro. Todos temos dificuldades porque as áreas culturais normalmente são as que recebem um pouco menos prioridade do que outras. Mas a paixão que a gente tem... Quem trabalha com patrimônio cultural tem aquela paixão no coração. Isso ajuda muito para que realizemos, e algumas vezes sem nenhum recurso. Eu, pessoalmente, creio que qualquer pessoa, em qualquer época da vida, com qualquer conhecimento, pode fazer preservação. A preservação é um estado de espírito, não uma especialização que você aprenda na escola. Tento sempre passar isso para meus colegas, para meus alunos, porque esse estado de espírito é o que garante o nosso patrimônio para o futuro. Os nossos desafios podem ser diferentes em dimensão, mas são os mesmo: fazer com que o patrimônio esteja disponível no futuro e usando os recursos que a gente pode. Uma das coisas que me chamou atenção e que vou levar com muito carinho do Margs é o fato de a equipe técnica conversar, tomar decisões em conjunto, e isso é uma coisa que não se aprende, não está na escola. É de cada um. Esse desafio de ter o patrimônio preservado, até com poucos recursos, se torna secundário, quando a equipe está junta, quando decide tudo de maneira horizontal e colaborativa. É o que também estou levando no coração da visita ao Margs.