A morte de três brasileiros na Ucrânia (os gaúchos André Hack Bahi e Douglas Búrigo e a paulista Thalita do Valle) despertou debate entre aqueles que consideram os combatentes como voluntários da causa ucraniana e outros que os classificam como mercenários, interessados apenas na remuneração recebida por sua atuação no front.
A polêmica é parte da guerra de narrativas que envolve o conflito no Leste Europeu.
O termo "mercenário" é utilizado pelo governo do presidente Vladimir Putin para definir qualquer estrangeiro que tenha ingressado na Ucrânia para lutar contra as tropas da Rússia.
Mas o próprio Kremlin afirmou ter contratado combatentes no Oriente Médio para se juntar a suas fileiras no conflito - a maioria proveniente da Síria.
Do lado ucraniano, obviamente, também há guerreiros profissionais, que chegam a receber até US$ 2 mil (R$ 10 mil) por dia para lutar pelo país.
Desde o início do conflito, dezenas de sites na internet servem como hubs de recrutamento - entre os brasileiros, é comum a utilização de páginas portuguesas.
Em geral, as representações oficiais da Ucrânia tentam se manter afastadas desse procedimento, embora a chamada Legião de Defesa Territorial da Ucrânia tenha sido criada, no início da guerra, pelo próprio presidente Volodimir Zelensky.
A verdade é que, em qualquer guerra, motivações e interesses se misturam, embora classificações sejam claras, segundo a literatura sobre conflitos armados e o Direito Internacional.
Voluntários são aqueles que se integram um corpo combatente por livre e espontânea vontade, que têm uma identificação com a causa e que não esperam remuneração por seus atos.
No atual conflito, alguns brasileiros inclusive reclamam de que, ao se oferecerem para lutar, foi oferecido dinheiro. Dizem que não queriam ir como mercenários.
Por outro lado, é comum também que mercenários se alistem junto às tropas sob a falsa alegação de serem voluntários.
Mercenários atuam em um conflito basicamente pelo dinheiro que recebem. São figuras antigas nos campos de batalha - aliás, antes da formação de exércitos regulares, os governos contratavam pessoas para defender os territórios em troca de dinheiro. Quando a guerra acabava, esses combatentes eram dispensados, e o corpo de combatentes, dissolvido - eram uma espécie de soldados freelancers.
A formação de exércitos conscritos é muito mais atual - o alistamento militar de cidadãos nacionais foi criado durante a Revolução Francesa, após 1789.
Os acordos de Haia e as Convenções de Genebra estabelecem a base do Direito Internacional Humanitário. Eles definem "mercenário" como alguém que participa das hostilidades com vistas a obtenção de remuneração superior àquela que é prometida a um combatente de uma graduação análoga; não ser nacional de uma das partes do conflito nem ser residente de um território ocupado; não ser membro das forças armadas de uma das partes do conflito e não ser enviado numa missão oficial por um Estado terceiro.
Em caso de captura, eles não podem invocar o estatuto nacional neutro e não têm direito ao estatuto de combatente ou prisioneiro de guerra.
Já no campo de batalha, não obedecem à cadeia de comando de exércitos, ficando livres - e, por isso, acabam sendo responsáveis, muitas vezes, por crimes de guerra.
Percebam que, em muitos casos na guerra da Ucrânia, nenhum dos governos reconhece um ataque a uma população civil, por exemplo? Muitas vezes, isso é indicativo do uso de mercenários, em geral enviados em missões de sabotagem. É nebuloso.
Também é comum a infiltração de mercenários entre corpos de voluntários e mesmo entre forças regulares - o Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostrou, no passado, brasileiros que integraram o Batalhão Azov, de orientação nazista, na Ucrânia. Isso também não significa que todos - ou a maioria - dos atuais combatentes estrangeiros na Ucrânia sejam nazistas.
Muitos brasileiros, alguns ex-militares, publicaram stories no Instagram, dizem estar na Ucrânia a fim de integrar uma tropa de elite de voluntários. E alguns negam estar sendo pagos para estar lá.
Há ainda os que foram integrados formalmente às forças armadas ucranianas, caso do gaúcho André Hack Bahi, que, em entrevista a essa coluna, chegou, inclusive, a informar seu soldo, valor que não foi publicado a pedido do próprio entrevistado. Nesse caso, ele era um soldado com garantias idênticas a um nacional ucraniano.
Desde o primeiro dia, como enviado especial do Grupo RBS ao Leste Europeu, vi estrangeiros chegando para lutar pela Ucrânia. Em Varsóvia, capital da Polônia, e, depois, em Przemysl, cidade polonesa na fronteira com a Ucrânia e principal rota de refugiados.
Enquanto muitos fugiam da guerra, outros entravam nela.
Em março, enquanto eu estava lá, os dados do governo ucraniano contabilizavam 20 mil combatentes estrangeiros que teriam cerrado fileiras com seus nacionais. Vi espanhóis, britânicos e holandeses, em geral com passagens pelo Iraque e pelo Afeganistão, alguns especializados em determinado tipo de combate - franco-atiradores eram muitos. Os brasileiros só os conheci depois.