Poucas vezes na história recente uma conjunção de fatos torna tão relevante o debate sobre liberdade de imprensa e de expressão, acesso à informação e privacidade.
A Europa vive sua primeira grande guerra no século 21, o primeiro conflito desde os Bálcãs, nos anos 1990; a União Europeia (UE) e nações como Austrália e Canadá apertam o cerco às plataformas digitais, que, por anos, criaram raízes no cotidiano das pessoas, fazendo uso de dados privados para se enriquecer em um território sem lei; o Brasil, em particular, discute sua própria legislação, que busca regulamentar a atuação de empresas como Facebook e Instagram (Meta), aplicativos de trocas de mensagens, como WhatsApp e Telegram, e ferramentas de buscas, como Google, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência. Além disso, o país está às vésperas de uma campanha eleitoral, onde, de novo, a desinformação, por meio de redes sociais, deve ser a principal arma dos candidatos. No aspecto internacional, o Twitter, território do ciberespaço onde estão importantes formadores de opinião, foi comprado pelo empresário Elon Musk, dono da Tesla e da SpaceX e que já deu declarações contrárias a qualquer tipo regulação das plataformas digitais.
No meio de tudo isso, estamos, eu e você, usuários em maior ou menos grau das redes sociais. Nós, que descobrimos, há algum tempo, que uma foto de um gatinho postada (curtida ou compartilhada) no Facebook não é só uma foto de... um gatinho. Junto com ela, repassamos uma avalanche de nossos preciosos dados pessoais, como nossos gostos, por onde andamos, o que compramos nos últimos dias, o que desejamos, e, por vezes, até nossa localização exata e nossos sentimentos.
Atenta aos riscos desse momento histórico, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) escolheu para marcar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, lembrado nesta terça-feira (3), o tema "Jornalismo sob cerco digital: a era digital e o impacto na liberdade de expressão, na segurança dos jornalistas, no acesso à informação e na privacidade". O objetivo é chamar a atenção para o valor e papel essenciais de uma imprensa livre e independente. A organização entende que a informação é um bem público, e a imprensa livre e independente é seu guardião. No entanto, o jornalismo profissional nunca esteve tão ameaçado. Cada vez mais profissionais e organizações de notícias sofrem com todo tipo de violações, com destaque pata o cerco digital. As redes sociais se tornaram território preferido por que, se arvorando no anonimato, busca enxovalhar a reputação de profissionais da imprensa, em especial mulheres. Além disso, a vigilância e o hackeamento de dados de jornalista por atores estatais e não estatais se tornaram uma preocupação.
Na Guerra da Ucrânia, por exemplo, o governo da Rússia, de Vladimir Putin, mantém um país inteiro sob censura. Com imprensa amordaçada, o conflito que já matou milhares de pessoas, destruiu infraestrutura ucraniana e coloca o mundo sob ameaça nuclear é visto, pelo cidadão comum russo, por meio do eufemismo de Putin, que chama a guerra de "operação militar especial". Na Ucrânia, a desinformação impera: massacres de civis, como em Bucha, testemunhados por corajosos repórteres de veículos de comunicação independentes, são tratados como mentira pelas autoridades russas e sua máquina de propaganda.
No meio desse cenário, há a falta de transparência e de responsabilização das empresas de tecnologia, o que contribui para a proliferação de desinformação e discursos de ódio. Esse território sem lei, no entanto, já não é tão amplo. Legislações pelo mundo começam a regulamentar a atuação das chamadas big techs, a partir de escândalos como o vazamento de dados privados no caso Cambridge Analytica. Esses regramentos estão mais avançados na UE e Austrália, mas também o Brasil, há dois anos, discute o projeto de lei 2.630/20, também chamado de PL das Fake News, que, com boa vontade dos deputados pode ir à votação antes do recesso.
Parecem temas distantes, mas dizem respeito às nossas vidas: da garantia de que a mensagem que enviamos para nossos familiares e amigos não será lida por terceiros ao direito, como seres humanos, que temos de receber informações verídicas sobre o cotidiano da nossa cidade, Estado, país e das complexidades do mundo em que vivemos. Nesse debate, o jornalismo tem papel fundamental de ser a barreira de contenção do logo da internet.
- Todos devemos fazer mais para enfrentar os riscos e aproveitar as oportunidades da era digital. Neste Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, convido os Estados membros, empresas de tecnologia, a comunidade de mídia, bem como o resto da sociedade civil a se unirem para desenvolver uma nova configuração digital, uma que proteja tanto o jornalismo quanto os jornalistas - disse Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) é uma das entidades que participam do debate, que celebra a edição de 2022 do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, entre os dias 2 e 5 de maio, no Uruguai. Marcelo Rech, presidente da ANJ e colunista de GZH, participa do painel, nesta terça-feira (3), chamado "Viabilidade da mídia: o que pode realmente ser feito?".
- Todas as iniciativas no sentido de fortalecer o jornalismo são bem-vindas, mas quantidade e o grau de sofisticação da desinformação chegaram a tal ponte que a única saída viável é as big techs pagarem pela limpeza da poluição social, como as fake news e discurso de ódio, que produzem. Mais do que criar perigosos controles externos sobre conteúdos digitais, é o jornalismo profissional que faz a limpeza dessa poluição. Mas isso tem um custo e deve ser custeado, ainda que parcialmente, pelos poluidores, como aliás já ocorre na Austrália - afirma Rech à coluna.