Era para ser uma sessão de praxe do Congresso dos Estados Unidos, a ratificação do resultado da eleição ocorrida dois meses antes. Mas o 6 de janeiro de 2021 entrou para a história da infâmia da política americana. Foi o dia do maior ataque à mais sólida democracia do planeta.
Um ano depois da invasão do Capitólio, episódio que culminou em cinco mortes, o país vive uma normalidade política com o presidente Joe Biden. Mas nem tudo é o que parece: os aguapés se movem por baixo do concreto de Washington, e, embora as instituições americanas tenham sobrevivido a seu maior teste de estresse, a democracia ainda está sob ameaça.
Do ponto de vista criminal, a análise é mais rápida e concreta. O FBI (polícia federal americana) fez seu trabalho. Prendeu ou indiciou 727 pessoas pelo incidente. Rastreou fotos e vídeos em redes sociais e câmeras de segurança. Mais de cem pessoas foram condenadas, algumas por vandalismo e agressão a policiais – entre elas, o famoso xamã do QAnon, o bizarro ativista de guampa que se tornou símbolo da arruaça orquestrada por seguidores do derrotado presidente Donald Trump. No Congresso, uma comissão investiga a ação de agentes políticos – entre eles o próprio Trump, mas também seus homens mais próximos, como Mark Meadows, ex-chefe de Gabinete, e Steve Bannon, que, mesmo fora da Casa Branca, segue atuando nos bastidores.
Quando digo que os aguapés estão se movendo no que o próprio Trump já qualificou como o pântano de Washington, refiro-me às ações que estão sendo tomadas por parte dos republicanos para frear investigações, redesenhar os distritos eleitorais para favorecer seus candidatos em eleições futuras e alterar leis estaduais a fim de abrir brechas que facilitem contestações de resultados de pleitos – afinal, não custa lembrar que os advogados de Trump perderam as mais de 50 ações em que contestavam os resultados da eleição de 3 de novembro. Com mudanças nas leis, quem sabe em 2024 não pode ser diferente?
Enquanto isso ocorre nos bastidores, mais visível é a disputa de novembro de 2022, quando serão renovados toda a Câmara dos Deputados e dois terços do Senado e eleitos 36 governos estaduais. Nas chamadas Midterms, os eleições de meio de mandato, os democratas correm o risco de perder a maioria nas duas casas – no Senado, na verdade, só lhes cabe o voto de minerva, que pertence à vice-presidente Kamala Harris. Uma derrota não apenas comprometerá os dois anos seguintes do mandato de Biden como pavimentará o caminho para o retorno de Trump.
Aliás, o ex-presidente segue no palanque. Interlocutores dizem que não há uma reunião de que participe em que ele se abstenha de reiterar que lhe roubaram a Casa Branca. Em sua realidade paralela, inclusive pretendia conceder uma entrevista hoje sobre a efeméride. Acabou desistindo. Biden, por sua vez, irá aos microfones culpar o adversário pelo caos daquele dia.
Um ano depois, os sinais menos perceptíveis dos estragos institucionais refletem nos números: os americanos temem pela saúde de sua democracia. O “orgulho” dos cidadãos com sua democracia diminuiu drasticamente, de 90% em 2002 para 54% atualmente, segundo uma pesquisa conjunta do The Washington Post e da Universidade de Maryland. Já a CBS revelou que 28% dos consultados acreditam que se pode usar a força para defender o resultado de uma eleição, enquanto 34% disseram ao The Washington Post que uma ação violenta contra o governo às vezes pode ser justificada – o maior percentual em décadas.
Os resultados sublinham as opiniões aparentemente quase irreconciliáveis que dividem a sociedade americana.