Desde janeiro de 2017, cerca de 630 mil migrantes venezuelanos entraram no Brasil por Roraima e Amazonas, fugindo da crise no país vizinho. Desses, 21% retornaram, 37% seguiram para outros países e 42% ficaram no país, resultando em um saldo migratório de 270 mil pessoas. O atual contingente militar da Operação Acolhida, que está em Pacaraima para apoio aos migrantes, é composto por tropas do Comando Militar do Sul (CMS).
Em entrevista à coluna, o general Valério Stumpf Trindade, comandante do CMS, que esteve recentemente na região, avalia o trabalho do efetivo, comenta o fluxo migratório atual e avalia os impactos da pandemia de covid-19 na chegada e na interiorização dos migrantes.
Que avaliação o senhor faz da Operação Acolhida?
A Operação Acolhida é uma ação multidisciplinar, coordenada pela Casa Civil, com participação de ONGs, reconhecida internacionalmente como exemplo no enfrentamento de crises migratórias. Cabe a nós, Exército Brasileiro, garantir que ela aconteça. Nossa atuação ocorre em três eixos: ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização. Em ordenamento e abrigamento, alojamos e alimentamos 10 mil venezuelanos diariamente. Eles recebem atendimento médico e vacinação. Além disso, é fornecida a documentação para a obtenção de empregos. O eixo crítico é a interiorização. Antes da pandemia, era possível interiorizar até 3 mil venezuelanos por mês. Agora, esse número caiu em mais de 50%, resultando em grande sobrecarga e maior tempo de permanência em Roraima. A população do Estado saltou de cerca de 520 mil, em 2017, para 650 mil. A interiorização não é tarefa simples, especialmente se levarmos em conta nossos índices de desemprego. Para ser interiorizado, o migrante precisa ser selecionado para emprego, ser recebido por sua família ou amigos já interiorizados, ou por uma instituição filantrópica. Caso contrário, permanecerá abrigado em Roraima, situação em que muitos estão há um bom tempo. Desde o início da operação, essa é a quinta vez que visito Roraima. Apesar do intenso trabalho realizado, infelizmente a percepção é de que a situação não está melhorando.
A frequências de chegada de migrantes diminuiu em relação aos primeiros meses?
Não há como não nos sensibilizarmos com o sorriso das crianças, com as pessoas doentes e idosas, suas perspectivas de futuro, todas precisando de ajuda.
Dados oficiais da operação mostram que entram em torno de 600 venezuelanos por dia, por meio dos postos montados em Pacaraima, Boa Vista e Manaus. O afluxo persiste, resultado da continuada crise no país vizinho. O ritmo da interiorização no Brasil diminuiu em face da pandemia, havendo, portanto, aumento da população de abrigados em Roraima.
Qual o diferencial do trabalho do atual contingente, composto por militares do CMS?
Estive mês passado visitando as tropas. São mais de 500 homens e mulheres que se deslocaram para Boa Vista e Pacaraima, por um período de quatro meses para contribuir no acolhimento de nossos vizinhos venezuelanos. Cada tropa que passa pela Operação Acolhida deixa a sua marca. E o comprometimento com a missão é a marca do CMS. Nossos militares realizaram trabalhos importantes, como a reconstrução das estruturas do posto de interiorização e triagem de Manaus, destruído por uma enchente; construção de mais dois abrigos com 1,8 mil vagas; ampliação do posto de recepção e apoio de imigrantes; realizamos mais de 25 mil atendimentos de saúde; focamos na interiorização, buscando os índices pré-pandemia, saindo da média de 1,3 mil interiorizações/mês para 2,5 mil, atingindo a marca de mais de 59 mil interiorizações no total. Isso sem falar que o 11º contingente retomou as atividades de ordenamento da fronteira, que estavam paralisadas em virtude do fechamento da fronteira. Os militares do CMS deram estabilidade aos processos da Força-Tarefa Logística Humanitária, atuando em sinergia com os demais órgãos.
A Venezuela é o país que mais perdeu população nos últimos cinco anos, e vivencia a maior crise migratória da história das Américas, superando inclusive a Síria em guerra civil.
Por mais quanto tempo a operação deve continuar?
Depende muito da situação político-econômica da Venezuela. É importante que se discuta essa tragédia humanitária. Conhecer o problema é parte da solução. A Venezuela, desde 2013, perdeu mais de 75% de seu PIB . De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), mais de 5,4 milhões de habitantes deixaram o país, quase um em cada seis. É o país que mais perdeu população nos últimos cinco anos, e vivencia a maior crise migratória da história das Américas, superando inclusive a Síria em guerra civil. A nação, infelizmente, está se transformando, a passos largos, em um Estado fracassado. É uma situação que precisa ser revertida. A crise venezuelana impacta também a situação energética brasileira. Grande parte da energia de Roraima era fornecida pela usina hidrelétrica de Guri, na Venezuela, que desde março de 2019 suspendeu o abastecimento. Desde então, o provimento é feito por termelétricas que consomem de 700 mil a 1,1 milhão de litros de diesel por dia. Quando visitamos os abrigos, a situação daquelas pessoas impacta a todos nós. Não há como não nos sensibilizarmos com o sorriso das crianças, com as pessoas doentes e idosas, suas perspectivas de futuro, todas precisando de ajuda.
Como a pandemia afetou a entrada de refugiados?
O fechamento da fronteira, de março de 2020 a junho deste ano, reduziu a entrada, mas não impediu que alguns ingressassem de forma irregular, por caminhos alternativos. Roraima tem uma fronteira em linha seca, de difícil controle. Com a fronteira fechada, foi suspensa a emissão de documentos, os venezuelanos não podiam ser interiorizados. A pandemia também afetou a permanência no Estado. Todos são vacinados, e o intervalo entre as vacinas do Programa Nacional de Imunizações e a da covid-19 é de 15 dias. Por fim, gostaria de destacar a recente reunião entre representantes de Nicolás Maduro e de Juan Guaidó iniciada semana passada no México, sob os auspícios da Noruega e do governo mexicano, nos traz esperança. Maduro quer o reconhecimento de seu governo e o fim das sanções econômicas; Guaidó, o compromisso de eleições limpas. Embora haja certo ceticismo, a nova conjuntura internacional parece ter contribuído para um sucesso parcial das negociações. Vamos torcer para que caminhem na direção certa.