A história dessas duas primeiras décadas do século 21 se mistura com de Angela Merkel, a chanceler da Alemanha que deixará o poder nas próximas semanas, depois da eleição deste domingo (26).
Quando sair do prédio do Bundestag, em Berlim, encerrando quase 16 anos à frente da maior potência econômica da Europa, Merkel deixará como legado o pragmatismo, a calma, a razão e a ciência na hora de tomar decisões em meio a um sistema internacional inundado por turbulências.
Merkel viveu no parlamento todas as grandes crises contemporâneas. Viu a União Europeia (UE), bloco do qual a Alemanha, junto com a França, é a principal líder, caminhar para o abismo, com o Brexit e ameaças de outras "exits", como da Grécia e da Itália. Na crise do euro, após a hecatombe econômica de 2008, encarnou a rainha má diante das nações mais pobres do Mediterrâneo. Fazendo o serviço sujo, forçou governos com fama de maus gestores a políticas de austeridade justamente quando tinham pouca capacidade para pagar suas próprias dívidas. Sua imagem de boa vizinha saiu arranhada, mas Merkel ganhou pontos dentro das fronteiras alemãs, onde a maioria da população não queria pagar a conta dos gastadores do Sul.
Se faltou empatia naquela ocasião, sobrou fraternidade quando milhares de refugiados das guerras do Iraque e da Síria bateram à porta do continente em 2015. Enquanto a fortaleza Europa se fechou, Merkel abriu os portões da Alemanha para receber mais de 1 milhão de migrantes que estavam barrados na Hungria, sob os aplausos de boa parte do mundo.
Seu país, mesmo com fama de pacífico, não ficou, entretanto, isento da onda de ataques terroristas protagonizados pelo grupo extremista Estado Islâmico, que varreu Londres, Paris, Nice, Bruxelas, chegando a Berlim. Dentro e fora da Alemanha, Merkel, da União Democrata Cristã (CDU, conservador), observou a ascensão de legendas de ultradireita, nacionalistas e populistas - alimentadas pela crise econômica, a rejeição ao excessivo poder de Bruxelas sobre os interesses nacionais e, em certa medida, pelas decisões do próprio governo Merkel, como a recepção aos imigrantes. Hoje, a Alternativa para a Alemanha (AfD), xenófobo e com tons que atentam contra os valores constitucionais do país, é a terceira força do parlamento.
Quando Merkel assumiu, a China recém havia ingressado na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Rússia ainda se recuperava de sua década perdida após o colapso soviético. Hoje, o dragão oriental estende suas garras ao continente, não como ameaça, mas como parceiro. Moscou se agiganta nas barbas do continente, ganhando influência no Oriente Médio e no Leste Europeu, após a anexação da Crimeia, preocupando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Quis o destino que a chanceler que encarara crises econômicas, terrorismo e guerras vivesse também uma pandemia, depois de anunciar que este seria seu último mandato. Na crise da covid-19, Merkel foi implacável defensora das restrições como mal necessário quando o coronavírus aportou no continente pela Itália.
Formada em Química com mestrado em Física, ela governou mais como executiva de uma grande empresa do que como política, ofício que começou a exercer em 1989, ano da queda do Muro de Berlim. Sua popularidade está na faixa dos 70%, uma das maiores da história do país, e é vista como uma das líderes mais confiáveis no cenário internacional. Ao contrário de colegas com os quais dividiu mesas de negociação, conversas telefônicas ou tribunas internacionais, não será uma nota de rodapé nos livros de história. Sairá do Bundestag pela porta da frente.