Você deve lembrar quando aquela bola de fogo, semelhante a de uma explosão nuclear, engolfou o céu da linda Beirute. Faz um ano. E, nesses 365 dias, ninguém foi responsabilizado oficialmente pela explosão que matou 214 pessoas, feriu mais de 6 mil e jogou o Líbano alguns níveis abaixo do fundo do poço.
Sabe-se algumas informações: que o carregamento de 2,7 toneladas de amônia saíra de navio com bandeira da Moldávia em 2013 da Geórgia com destino a Moçambique, tendo parado em Beirute, impedido de seguir viagem. A carga foi desembarcada em 2014 e ali ficou, no armazém de número 12, até explodir na fatídica tarde de 4 de agosto de 2020, arrancando do mapa a região portuária e boa parte dos bairros adjacentes.
A lista do que não se sabe, entretanto, ainda é longa: quanto, de fato, havia em nitrato de amônia no local, já que a destruição sugere que uma quantidade bem superior as 2,7 toneladas; como aquele material altamente explosivo ficou guardado no porto sem inspeção frequente ou medidas de segurança, em uma área tão próxima a bairros populosos; quem era responsável pelo carregamento; e, principalmente, o que ou quem provocou a explosão; intencional ou não?
Nesse um ano desde a tragédia, 18 pessoas foram detidas, entre elas os diretores da alfândega e do porto. O ex-primeiro-ministro Hassan Diab foi indiciado, mas o grosso das investigações esbarra em componentes políticos. O primeiro juiz de instrução do caso, Fadi Sawan, por exemplo, foi afastado no ano passado após acusar Diab e alguns ministros de envolvimento ou no mínimo negligência. O substituto, Tarek Bitar, enfrenta dificuldades para avançar também por conta de obstruções políticas. Sua ordem para interrogar o major-general Abbas Ibrahim, chefe da poderosa Agência de Segurança Nacional, por exemplo, foi negada pelo Ministro da Justiça. Não é incomum outros tipos de oitivas de deputados que à época exerciam cargos ministeriais serem impedidas por imunidade parlamentar, o que retarda o andamento do processo.
A impunidade pode até supreender algum desavisado. Mas não a quem está habituado aos meandros da política libanesa, onde reina a corrupção, o jeitinho, o manda quem pode e obedece quem precisa - inclusive para não ser morto em uma esquina ou com uma bomba plantada em seu carro. Um exemplo é que o maior assassinato da história do país, a morte do primeiro-ministro Rafik Hariri, em 2005, até hoje não resultou em prisões ou condenações. Depois de anos de um processo que custou US$ 1 bilhão, um tribunal das Nações Unidas condenou à revelia um membro do grupo extremista Hezbollah (um partido legalizado no Líbano). Mas, antes mesmo da decisão, a organização já dizia que jamais entregaria seu integrante.
O caso da explosão caminha na mesma direção. Enquanto isso, a situação estrutural no Líbano só piorou, com a inflação galopante, o colapso da libra libanesa e os frequentes blecautes, que atrapalham a operação do aeroporto internacional e ameaçam os hospitais, já colapsados pela covid-19. Um terço da população vive na pobreza. Segundo a organização Cáritas, ligada à Igreja Católica, 30% das famílias com um filho saltam uma refeição por dia porque não têm dinheiro para se alimentar corretamente. Dos feridos no desastre, muitos ficaram sem condições de trabalhar devido a incapacidades físicas e mentais. O desemprego supera 25%.
Em termos políticos, o país que viveu sua grande guerra, entre 1975 e 1990, um conflito de 30 dias em 2006 e seguidas invasões israelenses e assassinatos políticos internos, está à beira de se tornar um Estado falido. Há mais de um ano, não há acordo para formação de um governo, em um sistema complexo que favorece o sectarismo religioso - onde o presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita e o presidente do parlamento, muçulmano xiita. Independentemente desse acordo, que pouco muda são a velha elite política. Diferentes clãs que mandam e desmandam no país há décadas, aproveitando-se dos interesses de vizinhos, como o Irã (que apoia o Hezbollah) e Arábia Saudita (que apoia os sunitas) para ficarmos nos dois grandes da região que disputam a hegemonia, além de Síria Israel, e de atores extrarregionais, como Rússia, Estados Unidos, França e, mais recentemente, China.
Infelizmente, a outrora Suíça do Oriente Médio se parece cada vez mais com o Haiti, a Somália ou a Líbia.