Não é de agora que as ruas do Líbano estão em chamas. Você deve lembrar: no ano passado, no mundo pré-coronavírus, vários países eram palcos de protestos por maior igualdade social e contra a corrupção de suas elites. A América Latina fervia, a França era sacudida pelos Coletes Amarelos e, no Oriente Médio, iraquianos e libaneses saíam às ruas contra castas religiosas que dominam a política.
A pandemia tomou de assalto as manifestações, roubando das massas o direito de se reunirem. Mas o clamor popular, que tinha diferentes estopins mundo afora, ficou apenas latente por alguns meses. A morte do negro George Floyd por um policial branco em Minneapolis (EUA) mostrou que as insatisfações estavam apenas adormecidas à espera de um novo gatilho - no caso americano, a segregação racial e insatisfação com a violência policial.
No Líbano, a megaexplosão do dia 4 no porto de Beirute trouxe de volta às ruas pessoas cansadas de décadas de elite corrupta dominante, má administração do governo e crise econômica profunda, que se traduzem no dia a dia da população em uma moeda, a libra libanesa, de pouco valor, produtos caríssimos nos supermercados devido à alta inflação e desemprego, que atinge 25% da população.
Como tudo indica que a destruição que matou mais de 150 pessoas e deixou mais de 4 mil feridas em Beirute não foi provocada por um atentado terrorista, mas causada por negligência, o episódio reforçou a sensação entre a população de que o desastre é retrato do descaso do poder público.
O presidente Michel Aoun representa essa velha política. Ele prometeu eleições gerais, mas novo pleito não é a principal exigência das ruas. Os libaneses sabem que, eleição após eleição, pouco muda na prática uma vez que o parlamento é controlado por forças tradicionais que elaboraram uma lei eleitoral cuidadosamente calibrada para servir a seus interesses.
No Líbano, a lei ordena o rateio do poder: o presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o porta-voz do parlamento muçulmano xiita. É uma forma de garantir que a autoridade ficará partilhada entre as várias comunidades religiosas. Ao mesmo tempo que contenta a ânsia por poder de todos os lados, também provoca um festival de arranjos e conchavos de forma a garantir que a distribuição dos ministérios reflitam a pluralidade religiosa do país.
A classe política está inalterada há décadas - inclusive o Hezbollah, mezzo partido político, mezzo grupo terrorista, é comandado por uma figura antiga, o líder supremo Hassan Nasrallah, que começa, aos poucos, também a ser questionado. Por décadas, ninguém toma posse no país sem o aval dele. E disso muitos também estão cansados.
Além da crise econômica, da corrupção e da insegurança, há um forte senso de impunidade. Por isso, quando o presidente Aoun anunciou que iria “punir todos os responsáveis” pela explosão da semana passada, ninguém acreditou. Até hoje, a Justiça do país sequer conseguiu prender e julgar os responsáveis por atentados terroristas e assassinatos políticos, como o do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri - tudo indica, seus assassinos são integrantes do Hezbollah.
As lutas políticas entre elites ocorrem acima da massa da populaça, que vive na miséria. As renúncias de ministros se sucederam nos últimos três dias: Manal Abdel Samad, ministra da Informação, pediu para sair. Damianos Kattar, ministro do Meio Ambiente, também. Nesta segunda-feira (10), foi a fez da ministra da Justiça, Marie-Claude Nakm. Ato contínuo, todo o governo caiu, com a saída do premier Hassan Diab. Os libaneses repetiam um lema que era a epifania do país: “todos significa todos”. O primeiro passo para a mudança foi dado. Agora, vem o desafio da transição. E da renovação que, se não for feita com líderes políticos sintonizados com os novos tempos e com o clamor das ruas, o processo jogará os libaneses, de volta, nas mãos das velhas raposas.