A cena de um helicóptero americano deixando a embaixada dos Estados Unidos em Cabul, no domingo (15), leva muitas pessoas a comparar o momento à imagem dos americanos em fuga também da representação diplomática americana em Saigon (atual Ho Chi Minh), em 1975, em meio à invasão das forças comunistas do Vietnã do Norte.
A síndrome do Vietnã permanece no imaginário americano, entre a população, entre as forças armadas e entre as autoridades. Não é de hoje que a palavra "atoleiro", como era usada no Vietnã, segue sendo utilizada no Afeganistão ou no Iraque.
Queira o governo americano ou não, a comparação com Saigon é inevitável do ponto de vista imagético. E, como se sabe, guerras também são ganhas ou perdidas na batalha da imagem.
A coluna analisa semelhanças e diferenças entre o Afeganistão de 2021 e o Vietnã de 1975.
Cenário imediato
O palco da cena é muito semelhante. Diplomatas americanos deixando a embaixada dos Estados Unidos pelo ar. No caso afegão, saindo do prédio da representação dos Estados Unidos em Cabul, que fica dentro de uma chamada "zona verde", uma área superprotegida da capital, onde ficam palácios, prédios governamentais e outras embaixadas. No caso vietnamita, os diplomatas deixaram a representação também às pressas do prédio localizado em Saigon, à época capital do Vietnã do Sul (capitalista), cujo governo era apoiado pelos Estados Unidos contra as forças do Vietnã do Norte (comunista). Hoje, o país está unificado sob a bandeira comunista. Nos dois cenários, a saída ocorreu em meio à entrada nas cidades das forças inimigas - os comunistas em Saigon, e os talibãs em Cabul.
Contexto local
Há semelhanças em termos de contexto local. Em ambos os casos, a saída se deu diante da queda iminente do governo que apoiavam - o regime pró-Ocidente no Vietnã do Sul, e as autoridades democraticamente eleitas no Afeganistão. Mas há diferenças. No caso do Vietnã, o Norte invadiu o Sul com tropas regulares e apoio de uma guerrilha, o Vietcongue. No caso afegão, trata-se apenas de uma força irregular, o Talibã, sem presença de tropas de um Estado.
Há outra diferença fundamental. No Vietnã, os Estados Unidos foram colocados para correr ao perderem a guerra. No caso afegão, a decisão de sair foi americana. No ano passado, o governo de Donald Trump fez um acordo com o Talibã, assinado em Doha, no Catar, no qual prometia a retirada das tropas até setembro de 2021, desde que a milícia não voltasse a abrigar terroristas da Al-Qaeda. A saída foi antecipada por Joe Biden. Estava prevista para 31 de agosto.
Os Estados Unidos, na pessoa do secretário de Estado, Antony Blinken, rejeita as comparações entre o Afeganistão e o Vietnã, dizendo que, no caso atual, os americanos estão saindo porque querem. E que o objetivo (matar Osama bin Laden) foi cumprido. Esse argumento é parcialmente verdadeiro: sim, os EUA estão saindo porque querem, mas o líder da Al-Qaeda foi morto em 2011. E não no Afeganistão, mas no Paquistão. E de lá para cá se vão 10 anos.
Contexto internacional
Aqui está a principal diferença. Na época da Guerra do Vietnã, o mundo vivia a Guerra Fria. Estava dividido entre dois polos de poder: o americano e o soviético. O conflito vietnamita foi apenas uma entre várias crises que eram resultado desse contexto. O Vietnã do Norte era apoiado pela URSS; O Vietnã do Sul pelos EUA. Foram 10 anos de uma guerra que terminou com a invasão e tomada do Sul pelas tropas do Norte. Até hoje, o país tem um governo comunista - muito parecido com os padrões chineses.
O mundo atual não é mais bipolar, desde o fim da Guerra Fria, com o colapso soviético. Ao contrário, é multipolar - ou seja, há vários polos de poder (os EUA são um, a Rússia é outro, há a China, a União Europeia, etc). E a Guerra do Afeganistão, embora tenha reflexos externos, move-se a partir de uma dinâmica interna.
Ao longo desses 20 anos desde o 11 de Setembro, o Talibã nunca deixou de existir. Foi apeado do poder em 2001 em poucos dias, se retraiu, mas não desapareceu. De tempos em tempos, havia notícias de explosões e pequenos ataques da milícia.
Por outro lado, os governos pró-EUA que assumiram o poder eram frágeis e não detinham o monopólio do uso da força, algo fundamental para a construção de um Estado. O Afeganistão, mesmo após a derrota do Talibã, em 2001, sempre foi um país cujo governo era descentralizado, nas mãos de senhores de guerra ou líderes provinciais, muito mais ligadas à etnias locais predominantes do que ao regime que ora vigorava em Cabul. As forças armadas, embora treinadas e equipadas pelos Estados Unidos, não tinham um espírito de corpo e uma identificação com o poder central. Isso contribuiu para o colapso no momento em que o Talibã apontou no horizonte e explica em boa parte a erosão do Estado já corroído pela corrupção.