Na história da infâmia na Argentina há um lugar emblemático: o Campo de Mayo, unidade militar nos arredores de Buenos Aires que servia como centro de detenção clandestino. Dali, decolavam os chamados “voos da morte”, um dos mecanismos de extermínio da última ditadura no país vizinho: prisioneiros políticos eram transportados em aviões até o meio do Rio da Prata e jogados vivos na água, que só regurgitaria os corpos tempos depois.
Até agora, as imagens da repressão que ali tomou lugar entre o início de 1976 e o final de 1978 vinham de testemunhos de sobreviventes, relatos de ex-oficiais arrependidos e documentos de investigações que deram origem a vários processos criminais, entre eles o que colocou na cadeia o ditador Jorge Videla. Agora, graças à pesquisa de uma equipe de antropólogos, sociólogos e museólogos da Universidade Nacional de General Sarmiento, associada a especialistas em Ciências da Computação (Huella Digital) e de desenho de imagens audiovisuais da Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires (UBA), é possível caminhar por um dos pontos mais terríveis do Campo de Mayo: El Campito, o centro de detenção local, por onde passaram de 2 mil a 3,5 mil pessoas – dessas, apenas entre 30 e 40 sobreviveram.
Atualmente no local só há mato e ruínas dos prédios, que foram destruídos pelos militares a fim de ocultar evidências. Para construir, em detalhes, a versão virtual, foram usados como base 90 depoimentos de testemunhas disponíveis nos processos judiciais, as falas de sobreviventes em arquivos audiovisuais, fotografias aéreas, documentos da Comissão da Verdade, mapas e dados das das edificações obtidos pela equipe argentina de antropologia forense. Salas de interrogatório, onde ocorriam seções de tortura, pavilhões preparados para abrigar cavalos convertidos em dormitório, recintos transformados em maternidade clandestina e escritórios onde a vida e a morte eram decididos com um canetaço estão ao alcance de um clique no dispositivo de realidade virtual.
– No dia em que apresentamos o projeto, uma pessoa nos agradeceu porque não sabia onde o pai havia passado seus últimos dias – conta Virginia Vechiolli, antropóloga argentina coordenadora do projeto e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Os militantes sequestrados pelo aparato da ditadura ingressavam em El Campito de formas clandestinas, em geral nos porta-malas dos carros ou em caminhões. Eles eram retirados dos veículos, jogados no chão e vítimas de simulação de fuzilamento como forma de terror psicológico. Depois, eram levados para o centro de comando do campo, onde abandonavam para sempre seus nomes. Recebiam um número e, acorrentados entre si, iam para um galpão. Dali, só eram retirados para tortura ou, drogados, conduzidos até o avião da morte.
A ideia de reconstruir El Campito surgiu em 2008. Originalmente, seria um memorial que ocuparia dois hectares do Campo de Mayo para marcar os 40 anos do golpe militar, em 2016. Como o projeto não avançou, a tecnologia entrou em ação. Em 2015, Virginia montou uma equipe multidisciplinar, que começou a levantar dados.
Para os sobreviventes, era difícil identificar detalhes do lugar. A principal ferramenta foi dada pela equipe argentina de antropologia forense, a partir de escavações.
– Com esses dados, já tínhamos o tamanho e a distribuição dos prédios no espaço. Faltava todo o restante – conta a professora.
Pesquisadores das Ciências Sociais se dedicaram a ler mais de 90 testemunhos judiciais sobre os anos de chumbo. Virgina prossegue:
– Buscávamos identificar detalhes porque uma pessoa, contando o drama, não explicava se uma edificação tinha janela ou qual a cor da parede. A partir de um trabalho arqueológico de análise, fizemos rascunhos, que foram mostrados aos sobreviventes. Não quisemos incomodá-los de início. Preferimos ter uma ideia o mais aproximada possível do espaço antes de entrarmos em contato com eles.
El Campito, explica a professora, é menos conhecido do que outros locais da ditadura argentina, como a Escuela de Mecánica de La Armada (Esma). Enquanto pela guarnição da marinha passaram filhos de intelectuais e dirigentes políticos de esquerda, da classe média ilustrada, no Campo de Mayo foram presas pessoas da periferia.
– Quem passou por ali era dirigente sindical, operário de fábricas. Isso faz grande diferença, até na parte de envolvê-los no projeto. Os sobreviventes não dispunham de recursos para essas entrevistas. Alguns tinham apenas o celular – diz Virginia.
Na plataforma é possível caminhar virtualmente pelas vias de chão batido do campo e entrar em alguns prédios. Em um deles, o Pavilhão 3, não havia janelas nem piso. Os presos dividiam com os ratos o dormitório improvisado.
Em outro, o Pavilhão 1, havia janelas, mas elas estavam trancadas e cobertas. Ao fundo, havia espaço para as mulheres grávidas.
Uma das características das ditaduras no Cone Sul foi o sequestro de militantes de esquerda cujos filhos nasceram em centro de detenção e depois foram adotados de forma ilegal por outras famílias ligadas ao regime. A busca incessante por essas pessoas deu origem a organizações como as Mães e Avós da Praça de Maio.
Na edificação que servia como escritórios dos oficiais, estavam as salas de interrogatório. A riqueza de detalhes é tanta que estão lá equipamentos utilizados para choques elétricos. Nas descrições – e algo que aparece na reconstituição virtual –, os sobreviventes destacavam dois pontos de referência: um eucalipto central, sendo que a maioria das árvores do local eram coníferas, e uma caixa d’água, cujos resquícios foram encontrados in loco.
O dispositivo foi apresentado em 21 de abril no Tribunal Oral Federal como ferramenta para que os sobreviventes pudessem explicar os lugares onde estiveram, em relatos que antes careciam de concretude.
– A plataforma foi apresentada como prova daquilo que os sobreviventes falam, mas não podem mostrar. Esses dias, perguntaram a uma das testemunhas onde ela havia visto o algoz. E ela pôde descrever:
“A primeira vez eu o vi foi no lugar X”. As pessoas que estavam operando o dispositivo mostraram a sala – emociona-se Virginia.
A professora lembra que esse tipo de ferramenta é usada no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia e que julga acusados de crimes de guerra, como genocídio. Graças ao rigor da pesquisa para a construção da plataforma, é possível medir tempos de deslocamento e distâncias. Virginia destaca que a procuradoria que acusou líderes nazistas recriou as torres de vigilância do campo de concentração de Auschwitz, porque os guardas diziam que não sabiam o que estava ocorrendo ali devido ao tamanho do lugar. Por meio de maquetes, foi possível evidenciar que, de cima das torres, era possível avistar os crimes no campo polonês.
– Durante as audiências orais, na Argentina, as pessoas são chamadas para produzir croquis na hora, a mão, com imprecisões. Outras vezes, são usadas maquetes feitas por estudantes de arquitetura, mas o sobreviventes chega na hora e não entendem os locais. Por meio de uma plataforma online, é possível se localizar mais facilmente – destaca.
Virginia planeja ampliar o projeto. Propõe, por exemplo, que esse tipo de trabalho seja usado para recriar outras experiências de imersão em cenários de violência ou tragédias coletivas. Cita o caso da boate Kiss: o local poderia ser recriado em forma virtual para ser usado no júri. Se o tribunal pudesse contar com uma recriação digital da boate, as testemunhas teriam a possibilidade de localizar onde estavam no momento do incêndio e acompanhar todo o testemunho com o apoio do dispositivo virtual.
– Seria importante permitir aos sobreviventes que serão convocados a depor dizerem: “Eu estava nesse local aqui”. Eles poderiam sinalizar o percurso, onde estavam quando o foguete foi aceso, onde houve dificuldades para sair – sugere.